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21 de março de 2009

Adorei!

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A invenção da mulher - O que Freud e Lacan dizem sobre a feminilidade (Parte 4 de 5)

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Lógica do desencontro
A feminilidade possui, portanto, algo de inapreensível ao homem, visto que não participa da significação fálica que organiza o universo masculino. Ela é organizada segundo uma lógica diversa, uma lógica do não-todo. Ainda que do ponto de vista da biologia homem e mulher sejam macho e fêmea da mesma espécie, buscam objetos diferentes e são regidos por lógicas diversas. Isso faz com que a mulher guarde, para o homem, uma dimensão de estranheza, que se traduz comumente no preconceito sob a forma das acusações mais diversas.

Lacan vai formular então outro aforismo polêmico: “A relação sexual não existe”. Na verdade, ele utiliza o termo francês rapport, que pode ser traduzido tanto por relação quanto por razão, no sentido matemático. Se há uma heterogeneidade radical entre os sexos, em que cada um se relaciona não com o outro, mas com um objeto diferente, então não há uma relação biunívoca, não é possível escrever uma razão entre eles. Isso coloca os desencontros da vida amorosa e sexual sob um novo ângulo, não mais como uma contingência a ser sanada por meio do esforço e da boa vontade dos parceiros, e sim como uma dificuldade decorrente dos efeitos da linguagem sobre a sexualidade humana.

Para a mulher, seu corpo não é suficiente como garantia de acesso à posição feminina. Como ser da linguagem, ela não tem, assim como o homem, a receita pronta de uma sexualidade conforme a natureza. Porém, ao contrário de seu parceiro, que encontra a garantia de sua posição de homem em um elemento da própria linguagem, ela se ressente por não encontrar, como ele, um elemento simbólico que confirme sua condição de ser sexuado. Onde estaria exatamente a feminilidade: no corpo, na aparência, na sedução?


..............................................Fotografia de Helmut Newton

As injunções que chegam à mulher provenientes do imaginário constituem um sucedâneo precário daquilo que para o homem é suprido pela referência fálica, além de variarem segundo o capricho da moda e das ideologias. O ideal contemporâneo em nossa cultura parece ser o da indiferenciação sexual. No entanto, o que a mulher possui simbolicamente é sua condição de héteros, de diferença inassimilável pelo falicismo.
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..................................................................Continua
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Leia a parte 1, 2 e 3 do artigo
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19 de março de 2009

Curso: As cinco psicanálises

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Mais um bom projeto da minha amiga e psicanalista Flávia Albuquerque.
Confiram!
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A invenção da mulher - O que Freud e Lacan dizem sobre a feminilidade (Parte 3 de 5)

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A mulher no desejo masculino

Ao introduzir o conceito de objeto a, ao qual chamou de sua invenção, Lacan acentua a dissimetria entre as posições masculina e feminina. Na teoria lacaniana, trata-se do objeto fundamentalmente perdido, do qual o sujeito é separado em sua constituição e que representa a matriz de todos os objetos que ele vai desejar posteriormente na realidade, sendo denominado por isso de causa do desejo. Ainda que seja essencialmente imaterial, o objeto a pode ser materializado imaginariamente por alguns objetos; estes possuiriam a característica comum de serem parciais, em geral partes do corpo. O desejo masculino recorta imaginariamente no corpo da mulher esse objeto, o que faz com que ele não a deseje em sua totalidade, mas como objeto parcial. “Ao ter acesso ao lugar do desejo, o outro de modo algum se torna o objeto total, mas o problema, ao contrário, é que ele se torna totalmente objeto, como instrumento do desejo”, diz Lacan.

A percepção de que algo no corpo da mulher é tomado como objeto do desejo masculino pode provocar certa inquietação nela. Sobretudo na puberdade, com as modificações físicas, o surgimento dos caracteres sexuais secundários, a menina pode apresentar sinais de inibição, como a recusa em vestir roupas de banho para não exibir o corpo ou a adoção de uma postura curvada para esconder o aparecimento dos seios. Essa inibição sinaliza uma mudança, marcada pela consciência do olhar masculino que vê seu corpo como desejável. O que está em jogo aí é a passagem da condição de criança à de mulher que porta em seu corpo o objeto que causa o desejo para o homem.

Mais tarde, ainda que possa aprender a jogar com esse objeto para provocar o desejo masculino, a mulher não deixará de manter certa estranheza em relação ao fato de portá-lo em seu corpo. É comum se perguntar o que exatamente suscita o desejo de seu parceiro. Se ela chega a formular a pergunta ao homem e este lhe responde com sinceridade, a resposta inevitavelmente a decepcionará. Afinal, o que seus lábios, seios ou nádegas têm de especial ou mais importante que seu próprio ser?


..............................................Fotografia de Helmut Newton

A mulher estranha o caráter fetichista do desejo masculino, assim como a clivagem que para o homem separa facilmente o desejo do amor, uma vez que para ela ambos convergem em um mesmo objeto. “Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada”, afirma Lacan. Sua estranheza maior, porém, diz respeito ao lugar de objeto que ocupa na fantasia do homem.

Formas de existir
É nos anos 70 que Lacan cria um de seus aforismos mais polêmicos: “A mulher não existe”. Há sem dúvida certo gosto pela provocação nessa afirmação, porém ela não deixa de manter uma coerência teórica com a afirmação freudiana de que o inconsciente não reconhece a diferença dos sexos, mas apenas a dicotomia fálico/castrado. Portanto, o que Lacan afirma não existir não é a mulher em sua materialidade física, e sim o significante que definiria “A” mulher. Dessa forma, as mulheres são obrigadas, uma a uma, a construir sua versão da feminilidade sem um suporte simbólico.

A mulher, porém, ganha existência como ideal presente na criação artística – por exemplo, na literatura. Quando o poeta cria uma representação do feminino, ele confere realidade a esse ideal. Da mesma forma, o homem apaixonado quando toma sua amada como aquela que é capaz de preencher sua falta. Segundo Melman, “o amor é ele mesmo uma tentativa de fazer existir A mulher, a única, aquela sem a qual minha vida está perdida”. A distância entre esse ideal e a mulher da realidade pode ser verificada sobretudo na vida das musas ou sex symbols, que sofrem por encarnar, muitas vezes com conseqüências trágicas, esse ideal que ultrapassa suas limitações cotidianas.


..............................................Fotografia de Helmut Newton

A maternidade seria outra forma de fazer existir a mulher, dessa vez contando com o aval da religião cristã, que cultua a figura materna. O problema é que essa seria mais uma maneira de encarnar o falo, restando para ela a sensação de que a feminilidade continuaria no horizonte. Além disso, nossa cultura, na atualidade, aponta tal vertente como limitadora e acena com outros modos de realização feminina.

É em torno dessa época que Lacan define masculino e feminino como dois campos nos quais os sujeitos podem se colocar independentemente de sua anatomia. Tais campos são constituídos por sua relação com o falo, aqui redefinido como função fálica. Os homens são totalmente concernidos pela função fálica, ou seja, eles são todos fálicos. Sua relação com o mundo é mediada pelo gozo fálico, que inclui o gozo sexual, porém não se resume a ele. As mulheres, por sua vez, não se restringem ao gozo fálico, embora participem dele tanto quanto os homens.

Nesse sentido, elas seriam não-todas fálicas, ou seja, elas teriam acesso pleno ao gozo fálico, mas também a um gozo não-fálico, que Lacan qualifica como suplementar. Dessa maneira, ele relê o impasse de Freud, que não conseguia explicar totalmente a sexualidade feminina a partir do falo, admitindo que a feminilidade não diz respeito inteiramente ao falo e que ela só pode ser pensada considerando sua pertença a um campo não-fálico. A noção de um gozo suplementar é interessante porque, enquanto a teorização freudiana deu margem a críticas que acusavam a psicanálise de situar a mulher do lado do menos, a versão lacaniana nesse sentido a situa do lado do mais, mais de um gozo. Esse gozo, que Lacan chama de gozo Outro, não diz respeito ao sexo. Ele o aproxima, antes, do gozo místico dos santos, daquilo que está excluído da palavra, do inefável.

.............................................................Continua...

Leia a primeira e a segunda parte do artigo

18 de março de 2009

Teatro

Vi no O Globo:

"O psicanalista e escritor Contardo Calligaris estreia "O Homem da Tarja Preta", a primeira peça teatral de sua autoria, no dia 19 de março, no Teatro Eva Herz (Livraria Cultura - Av. Paulista 2073, Cerqueira César; tel.: 3170-4059).

O texto é interpretado pelo ator Ricardo Bittencourt, que, em cena, dedica uma noite de sua vida a descobrir o que é ser homem em sites de bate-papo na internet. Bittencourt, que veio do grupo Uzyna Uzona de José Celso Martinez Corrêa, atua em parceria com a atriz Bete Coelho, responsável pela direção da peça.

O espetáculo tem sessões às quintas e sextas, às 21h, até o dia 19 de junho. O ingresso custa R$ 20 e a peça não é recomendada para menores de 16 anos."

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17 de março de 2009

A invenção da mulher - O que Freud e Lacan dizem sobre a feminilidade (Parte 2 de 5)

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Construção da feminilidade
Em sua releitura da teorização freudiana do Édipo, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1980) ressalta alguns pontos importantes para a compreensão da feminilidade. Em primeiro lugar, distingue a castração em sua dimensão simbólica, como submissão às leis da linguagem, de sua dimensão imaginária, como temor da emasculação, sentimento de perda ou inferioridade. Define o falo como um significante, ressaltando o papel da linguagem na constituição do sexual no humano, que assim se diferencia da atividade reprodutiva dos animais. O que o significante fálico instaura é a dessimetria radical entre as posições masculina e feminina: dado que não há dois elementos simbólicos, um para cada sexo, homens e mulheres devem se reportar a um mesmo significante, o falo. A repartição simbólica dos seres sexuados não duplica simplesmente a divisão anatômica, mas organiza duas classes de seres que se referem, de maneiras diferentes, a um mesmo significante. Mesmo entre os casais homossexuais cada um dos parceiros assume comumente um papel que é facilmente reconhecido como masculino ou feminino. Ou seja, ainda que não haja distinção anatômica entre os parceiros, a diferença da posição sexual é instaurada pelo falo.

Segundo Lacan, as duas formas de se reportar ao falo podem ser compreendidas com o recurso dos verbos ser e ter. Inicialmente, o bebê, menino ou menina, seria tomado pela mãe como sendo o falo, investimento desejante necessário para seu advento como sujeito. Esse momento inicial deve ser transitório, uma vez que a permanência da criança assujeitada ao desejo da mãe traria conseqüências graves. É necessária, portanto, a intervenção do pai (ou de alguém que exerça a função paterna) como um agente a privar a mãe de seu falo e a criança de seu objeto incestuoso. Mas é somente em um tempo logicamente posterior que o pai ressurge como portador do falo que a mãe deseja e a situação edípica pode encontrar sua saída. O menino herdaria aquilo que Lacan chama de insígnias do pai, adquirindo uma “virilidade por procuração”. Desse modo, ele pode jogar com ter o falo como atributo viril, ainda que simbolicamente tenha passado pela castração. Quanto à menina, a passagem à posição feminina se daria pela via do não tê-lo, ao mesmo tempo que pode vir a sê-lo, o que lhe confere um enorme poder sobre aqueles que o têm.

A teorização lacaniana traz de imediato algumas implicações: a primeira é que macho e fêmea, na espécie humana, não são o complemento natural um do outro, como preconizam ainda hoje algumas teorias, ecoando um ideal tão antigo quanto o yin/yang. Porém, mesmo não sendo complementares, “masculino” e “feminino” não são categorias estanques, que possam ser pensadas isoladamente. Assim, a mulher tem seu desejo suscitado pelo falo que o parceiro possui, enquanto para o homem é ela que encarna o falo que ele deseja.

.............................................Fotografia de Helmut Newton

É importante lembrar que a inexistência de um significante específico que venha a garantir a feminilidade torna a mulher particularmente sensível ao imaginário, ao mundo das imagens. Isso se manifesta não somente quanto à imagem do outro, do semelhante, como na relação de amizade com outra mulher, mas também no que diz respeito às imagens provenientes da mídia, que impõem padrões de beleza de forma superegóica. A medicina reconhece há tempos a alta incidência entre mulheres de quadros clínicos relacionados à excessiva preocupação com a imagem corporal, como a anorexia.

Lacan frisa ainda o aspecto de construção do feminino ao inspirar-se em um artigo da psicanalista Joan Rivière para definir a feminilidade como mascarada, ou seja, um conjunto de artifícios que a mulher utiliza para parecer feminina aos olhos do homem. O papel do olhar aqui não deve ser negligenciado; é esse olhar que a mulher busca em seu parceiro como garantia de sua importância no desejo dele. Se pensarmos que o próprio eu é construído a partir do olhar do outro, que lhe confere consistência, podemos dimensionar o que representa para a mulher ser reconhecida como desejável por um homem.

Veja aqui a primeira parte do artigo.
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16 de março de 2009

Depressão

Veja a entrevista com a psicanalista Maria Rita Kehl, onde ela fala de depressão, tema de seu livro 'O tempo e o cão' (Ed. Boitempo):

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O tempo que corre rápido e a idéia de que é preciso estar sempre alegre podem estar na origem de um dos grandes males do século XXI: a depressão.
A partir de casos que chegaram ao seu consultório e de reflexões históricas, a psicanalista Maria Rita Kehl levantou a hipótese de que a depressão é, sim, um sintoma social.

"Os depressivos, além de se sentirem na contramão de seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social de sua tristeza"

Para Maria Rita Kehl, numa sociedade que “aposta na euforia como valor”, a tristeza e o desânimo tendem a ser vistos como patologia, como um comportamento a ser corrigido – de preferência, com remédios.

Você diz que a depressão, hoje, é semelhante ao que era a histeria século XIX. Quer dizer que a tristeza é tão mal aceita hoje quanto era o comportamento feminino não recatado?

Quando falo de sintoma, não me refiro a dados estatísticos. Mas por que podemos pensar a histeria, no século XIX, como sintoma social?

Porque, nas regras de convívio e da moral desse período, o lugar da mulher estava claramente delimitado: a mulher que casa virgem, é fiel ao marido, cuida dos filhos, vive dentro de casa.

A histeria se torna sintoma social quando os médicos começam a receber, nos consultórios, mulheres que tinham convulsões, cegueiras e paralisias sem que nada fosse constatado no exame clínico.

Sempre houve e sempre haverá histéricas, mas, naquele momento, aquele comportamento enigmático causou um ruído por ser algo oposto à imagem da mulher serena, recatada, contida na sua expressão.

As histéricas rasgavam a fantasia e sinalizavam que havia alguma coisa errada.

E por que os deprimidos são o sintoma social deste início do século XXI?

Se você pensar nos parâmetros da sociedade contemporânea, é possível dizer que se trata de uma sociedade anti-depressiva.

É uma sociedade, aparentemente, com muita liberdade de escolha: como você quer viver, seu estilo de vida, como você vai se vestir, que tribo vai frequentar, o que vai comer, beber.

Há muita liberdade no plano superficial, no plano da festa. Existe muito apelo para a diversão.

Em contraste com o século XIX, em que o apelo era para contenção, sobriedade, repressão da sexualidade, hoje, a moral social é uma moral da diversão, não do sacrifício.

É uma moral que chama para aquilo que, na psicanálise, chamamos de gozo. É mais do que o prazer, é o excesso.

A rave não é, de alguma maneira, o símbolo disso tudo?

E para aguentar uma rave você é obrigado, inclusive, a tomar uma química. O apelo social não é para você aguentar o trabalho, mas a festa. Claro que a festa é ótima. Mas o que digo é que ela foi transformada no ideal social deste momento.

E o deprimido destoa radicalmente desse ideal.

Sim, porque esta é a única sociedade em que as pessoas ficam infelizes por se sentirem culpadas de não estarem tão felizes quando deveriam. Se alguém está triste, o que é natural na vida, essa cobrança social duplica a infelicidade.

O depressivo é sintoma social porque ele é aquele que não consegue aceitar o convite tão sedutor para estar sempre de bem com a vida. Mas esse é apenas um dos paradoxos. O outro diz respeito ao uso excessivo de medicação.

Seria o paradoxo do aumento do consumo de anti-depressivos e, ao mesmo tempo, do número de deprimidos?

A partir da década de 1980, a indústria farmacêutica começa a desenvolver anti-depressivos muito sofisticados. Era de se esperar que, com a oferta de soluções medicamentosas, o número de depressivos caísse. Em vez de cair, só aumenta.

Você pode até dizer que isso acontece porque, havendo remédio, mais gente procura os médicos. Mas isso não explica um salto de 50%.

Essa é uma das razões pelas quais esse tema começa a preocupar os psicanalistas. A psicanálise tem que começar a pensar na depressão, que passou muito tempo sendo tratada apenas por psiquiatras.

Do contrário, estaremos condenando essas pessoas que se dizem depressivas a só se tratar com remédios.

Mas o remédio, em muitos casos, é a única saída, não?

Claro, e não se trata de pôr um campo contra o outro. Muitos depressivos precisam de medicação até para conseguir sair da cama, pegar um ônibus e vir para a consulta.

Não é uma cruzada contra o anti-depressivo, mas um contra a medicalização indiscriminada.

Por pressão dos laboratórios, os médicos começam a dar anti-depressivo para qualquer coisa: falta de apetite, stress, problemas no trabalho, mau humor.

Qual a conseqüência disso?

Muitas vezes eu recebo pacientes, aqui no consultório, ou numa escola do MST em que atendo pessoas de baixa renda, que já chegam se dizendo deprimidos. Esse é diagnóstico do século.

Aí você descobre que aquela pessoa não é deprimida, ela apenas não se recuperou de uma perda qualquer.

Há casos de gente que passa a vida tomando remédio sem precisar. E o anti-depressivo produz uma certa acomodação, um esvaziamento psíquico.

Psicanaliticamente, como pode ser definido um depressivo?

O depressivo recua para não ter de enfrentar conflito. E o conflito é o centro da vida psíquica. Não é que você tenha que viver em conflito, não saber o que quer, mas a vida psíquica exige constantes enfrentamentos entre o vetor do desejo e o do super-ego, que diz “isso não pode”.

O depressivo tende a recuar diante da necessidade de fazer escolhas e a não enfrentar os desafios da vida.

Você fala, no livro, que o depressivo tende a ser visto como “o portador de más notícias”. Voltando ao caráter social da depressão, o quanto essas característica são agravadas hoje?

O senso comum imagina que fulano não sai da cama porque está deprimido. Estou propondo inverter um pouco a lógica.

Fulano está deprimido porque não sai da cama, não sai do quarto, não sai de casa. Ou seja, primeiro o sujeito recua e, em consequência desse recuo, ele se deprime.

Qual o papel da tecnologia nisso tudo? Ela agrava o isolamento?

A tecnologia propicia muitas relações, mas sem a presença corporal. E a pulsão vital do homem só se mobiliza diante do outro corpo.

Se ficar apenas mandando mensagens ou e-mails, você pode ficar num estado de esfriamento. Não é falar mal da tecnologia, mas ela não pode substituir o presencial.

Mas o que mais chama a minha atenção é o ritmo veloz que a tecnologia imprime à vida, a velocidade com a qual ela te solicita. A internet, o celular, o trânsito te solicitam sem parar.

Quando você dirige um carro na marginal, você não pode parar de responder a estímulos externos.

A imagem do motorista na auto-pista é uma espécie de metáfora do sujeito contemporâneo.

Ele não pode ficar para trás, não pode diminuir a velocidade e tem de estar atento a todos perigos e solicitações, numa permanente rivalidade com o outro.

A falta de tempo pode levar à depressão?

O psiquismo tem toda uma delicadeza. O homem é capaz de suportar tudo, mas as adaptações têm um preço.

A adaptação à velocidade contemporânea, que atropela os processos psíquicos mais delicados, da memória, do devaneio, da fantasia, da chamada vida interior, pode ter como preço a depressão.

A velocidade cria um vazio, e não um preenchimento. Pense numa semana em que você correu muito. A gente olha e parece que não aconteceu nada, parece que só o tempo voou por cima da gente.

O que eu fiz do meu tempo? Nada, só respondi a estímulos, a demandas, e aí vem o sentimento de desvalorização da vida.

Que participação a mídia tem nisso?

A mídia e a publicidade são o arauto dessa ideologia. A publicidade tem de ser analisada. Que mensagem a publicidade vende? Seja um campeão, seja feliz, os outros que se danem. Como diz o (jornalista) Eugênio Bucci, a publicidade vende, sobretudo, a exclusão.

E como preservar nossa vida psíquica?

O Antonio Candido, na inauguração de uma biblioteca do MST, disse: tempo não é dinheiro, essa é uma barbaridade que o capitalismo nos impõe. O tempo é o tecido da vida.

Essa foi uma das sementes do livro. É uma brutalidade eu pensar que tenho de fazer, sempre, o meu tempo render dinheiro.

Vamos ver o que estamos fazendo com o tecido da vida, porque ele esgarça, ele rasga, perde a cor, fica fragilizado.

Fonte: Terra Magazine

Veja aqui outro texto da autora sobre o tema.

................................................. Starry Night - Van Gogh
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"Sinto em mim um fogo que não posso deixar extinguir, que, ao contrário, devo atiçar ainda que não saiba a que espécie de saída isso vai me conduzir. Não me espantaria que essa saída fosse sombria. Mas, em certas situações vale mais ser vencido do que vencedor."
Van Gogh
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Vi esta citação num artigo chamado 'A que responde a Arte de Van Gogh?' no Opção Lacaniana
Clique aqui e veja o artigo na íntegra.
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15 de março de 2009

A invenção da mulher - O que Freud e Lacan dizem sobre a feminilidade (Parte 1 de 5)

O Texto abaixo, intitulado A invenção da mulher, do psicanalista Marcus do Rio Teixeira, foi publicado na edição especial de Mente&Cérebro As faces do feminino (acredito que ainda esteja nas bancas) e aborda o feminino a partir de Freud e Lacan.
Ilustrei o artigo com imagens do fotógrafo alemão Helmut Newton, artista que, na minha opinião, mais explorou e tentou retratar o universo feminino.

Aproveitem a leitura!

A invenção da mulher

A feminilidade tem um quê de enigmático; por não poder ser totalmente contida na significação fálica que organiza a sexualidade masculina, se constrói à custa de reivindicação e artifícios imaginários, recursos que redundam em uma lógica muito peculiar em termos de desejo e gozo

A sexualidade humana constantemente é explicada com base no mecanismo hormonal e em modelos animais. Desse ponto de vista, as coisas são essencialmente simples – homens e mulheres seguiriam condutas que visariam a reprodução da espécie, comparáveis às dos outros animais sexuados. Cotidianamente, porém, a realidade desmente tal hipótese.

Mamíferos, aves e peixes apresentam comportamento invariável durante o período do acasalamento, que consiste na emissão de determinados sinais – visuais, sonoros, olfativos – facilmente reconhecidos pelo indivíduo do sexo oposto. Na natureza, portanto, não existe possibilidade de mal-entendido; os únicos problemas que os casais enfrentam são de ordem material, como densidade demográfica da espécie em sua região. No reino animal não há sofrimento psíquico causado pelo relacionamento sexual. Não se ouve falar de peixes apaixonados, elefantes em crise de meia-idade ou leoas querendo discutir a relação.

Em contrapartida, na espécie humana, não há uma conduta unívoca para a aproximação sexual; além disso, os sinais emitidos por cada um são ambíguos tanto para seu parceiro como para si. A própria linguagem, que supostamente serve para a comunicação, é a principal fonte desse mal-entendido. Quem nunca teve a sensação de que o(a) parceiro(a) não compreende nada do que lhe é dito? Permeada de linguagem, nossa sexualidade perde as certezas e o objetivo natural da reprodução da espécie. Longe do Éden sexual imaginado nostalgicamente por nossos cientistas, ela é marcada pelas incertezas e pelos conflitos inerentes ao humano. “De todos os animais o falasser [o ser falante] é o único que possui uma sexualidade infeliz. Não somente complicada, mas infeliz”, comenta o psicanalista francês Charles Melman.
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...........................................Fotografia de Helmut Newton

Édipo feminino
Uma vez que a linguagem nos afasta de uma sexualidade natural, determinada pela biologia, o que definiria então a feminilidade? Sabemos que o fato de uma pessoa nascer com um par de cromossomos XX significa que se trata de uma fêmea da espécie humana, mas não garante que venha a ser uma mulher. Se o real do organismo não fornece essa garantia, o que constituiria a especificidade da posição feminina? Poderíamos pensar que tal posição nada mais seria do que a assunção, pelo sujeito, das representações do feminino que a cultura lhe transmite. Sabemos, porém, que tais representações variam histórica e geograficamente. Seria então a feminilidade uma colagem imaginária de modelos impostos, sujeita a oscilações de tempo e lugar? Qual o papel da linguagem na constituição da posição sexual?

Portanto, enquanto a masculinidade é da ordem da transmissão, a feminilidade diz respeito à invenção, a cargo de cada mulher. Não é à toa que questionar-se sobre o que significa ser feminina é algo muito comum para elas. A figura da amiga, na qual a mulher se espelha e de quem imita não somente os aspectos físicos, o corte de cabelo, as roupas, mas também o jeito, o “ar”, ilustra perfeitamente essa busca do traço da feminilidade. A jovem Dora, que Freud atendeu para tratar de sintomas histéricos, é um caso clássico até hoje citado como exemplo do misto de fascinação e rivalidade de uma mulher em relação a outra.

De acordo com Sigmund Freud (1856-1939), a assunção, pelo menino e pela menina, de uma posição masculina ou feminina ocorre ao final de uma série de investimentos libidinais e identificações com o casal parental (ou com os adultos que cumprem esse papel), que ele denominou Édipo, tendo como modelo o mito grego. Freud destaca a importância no Édipo de um elemento simbólico que ele chamou, novamente segundo uma referência clássica, de falo. Desde o início ele esclarece que, embora o órgão masculino seja uma das formas assumidas pelo falo, este não se reduz ao pênis. Em uma equação simbólica, outros objetos da realidade podem ter valor fálico, como o bebê para a mãe, as fezes como objeto de dom ou ainda o dinheiro. O inconsciente não reconhece a díade homem/mulher, mas apenas fálico/castrado.

A saída do Édipo masculino em sua forma mais simples se dá, grosso modo, pela renúncia do menino à mãe como primeiro objeto do desejo devido ao temor da castração. Ao identificar-se com o pai, que ocupa a função de agente interditor entre a mãe e ele, o menino adquire a possibilidade de exercer sua virilidade com outras mulheres, respeitando o tabu do incesto. Mas é o Édipo feminino que constitui motivo de embaraço para Freud; ele logo percebe que o percurso da menina em direção à sexualidade adulta não é simétrico como o do garoto. A mudança do objeto de desejo (a mãe é também o primeiro objeto de desejo para a garota) para o pai e a própria saída da situação edípica são questões problemáticas.

...........................................Fotografia de Helmut Newton

Ao final, Freud destaca o ressentimento da menina em relação à mãe por não encontrar do lado dela um elemento simbólico que possa lhe garantir o acesso à feminilidade. A relação entre mãe e filha, portanto, seria sempre um tanto tensa e marcada pela reivindicação, traços que, segundo ele, se repetiriam com o primeiro homem com o qual a mulher mantivesse um laço conjugal.


Portanto, enquanto a masculinidade é da ordem da transmissão, a feminilidade diz respeito à invenção, a cargo de cada mulher. Não é à toa que questionar-se sobre o que significa ser feminina é algo muito comum para elas. A figura da amiga, na qual a mulher se espelha e de quem imita não somente os aspectos físicos, o corte de cabelo, as roupas, mas também o jeito, o “ar”, ilustra perfeitamente essa busca do traço da feminilidade. A jovem Dora, que Freud atendeu para tratar de sintomas histéricos, é um caso clássico até hoje citado como exemplo do misto de fascinação e rivalidade de uma mulher em relação a outra.

.........................................................................Continua...