Mais um texto inédito, escolhido e enviado pelo autor especialmente para os leitores do ViaFreud, continuando a comemoração dos 10 anos do blog!
Leonardo de Miranda é meu colega do doutorado na UERJ e coordena a Pós graduação que dou aula no Rio de Janeiro. Uma boa parceria de trabalho, que veio parar aqui no blog também!
“O desejo do psicanalista e a ética da psicanálise”
Leonardo
de Miranda Ferreira
Para
situarmos historicamente a formulação do conceito de desejo do psicanalista,
mencionemos brevemente o fato de que em meados do século XX a psicanálise
sofreu uma grave apatia teórica provocada essencialmente pelo distanciamento
entre os analistas e o texto freudiano. Os primeiros seminários proferidos por
Lacan se basearam na empreitada de recuperar o legado e a teoria de Freud que
passo a passo estava sendo destinada à profunda distorção. Um dos conceitos que
melhor reflete essa produção pós-freudiana é o da contratransferência.
Tal
conceito surge ocasionalmente no II Congresso de Nuremberg (FREUD, 1910b) e que
não será precisamente elaborado por Freud ao longo de sua obra. Não obstante a
pouca importância teórica dada pelo autor, os chamados pós-freudianos
supervalorizaram a contratransferência até mesmo considerando como um dado
positivo para o tratamento. Além da primeira citação, no pronunciamento feito
em 1910b:
Tornamo-nos cientes da
contratransferência, que nele [médico], surge como resultado da influência do
paciente sobre os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados a insistir que ele reconhecerá a contratransferência,
em si mesmo, e a sobrepujará. (FREUD, 1910b p. 130)
O termo aparece mais duas vezes apenas em um único texto de 1915 “Observações
sobre o amor transferencial” (1915c). Nas parcas situações em que é mencionada,
a contratransferência é tida mais como um problema a ser superado do que uma
solução. É algo que aponta para a necessidade de um constante autoexame por parte
do analista, a fim de evitar que suas questões inconscientes influenciem no
tratamento do paciente. Assim, Freud (1910b) assinalava para o público de
Nuremberg, a importância da análise pessoal de cada um, a medida em que os
complexos inconscientes podem ameaçar o andamento de um trabalho clínico.
Entretanto,
valendo-se de uma série de distorções, alguns analistas pós-freudianos
sustentavam que os afetos em si poderiam ser utilizados não só para
compreensão, mas para a interpretação mesma do analisando. Para eles, a
contratransferência exerce um contrapeso à transferência do analisando, tendo
em vista a partícula “contra” [gegen]
que denota tanto uma situação paralela ou complementar, como uma oposição, uma
reação contrária. A autonomia com que agiram em relação à obra deixada por
Freud na elaboração de suas teses sobre a contratransferência é reconhecida até
mesmo por esses autores. Temos, por exemplo, Melanie Klein, Paula Heimann e
Heinrich Racker, este último considerado um dos maiores teóricos sobre o tema.
Não há paralelo na psicanálise freudiana que sustente suas afirmações que
indicam que os dados do inconsciente do analisando serão expressos no
inconsciente do analista, que as vivências do analista terão íntima relação com
o processo vivido pelo analisando. Para Racker (1982), o fato de a
contratransferência enviar sempre ao inconsciente do outro – no caso, o do
analisando - explica-se, por um lado, pela sua estreita articulação com a
transferência, e por outro pelas próprias vivências internas inconscientes do
analista, análogas, de alguma forma, às que o analisando experimenta.
E
foi justamente se contrapondo a esse tipo de entendimento que Lacan elabora a
noção de desejo do analista. Mostraremos aqui sua operação numa situação de
início de tratamento a partir de uma vinheta clínica.
Maria,
51 anos, procura atendimento no ambulatório do setor de psicologia de um posto
de saúde no município de Miguel Pereira, munida do encaminhamento do psiquiatra
com quem faz tratamento há 4 anos. Ao entrar na sala de atendimento aguarda a
instrução “fale livremente sobre o que lhe vier à mente” e diz: “O que vier à
mente? Por onde devo começar? Bom, vou falar de mim, então. Tenho Síndrome do
Pânico, tomo tais e tais remédios que já não fazem mais efeito na diminuição
das minhas crises. Quero que elas acabem o mais rápido possível, por isso vim
até aqui.” Faz um silêncio que não foi interrompido, então, saca de sua bolsa
uma folha com o laudo médico e a descrição de seu quadro, põe em cima da mesa,
dizendo: “É isso!”. O trabalho inicial com esta paciente foi fazê-la sair do
silencio que o diagnóstico dado pelo psiquiatra a reservava. “Tenho Síndrome do
Pânico” ou “sou Síndrome do Pânico” não falam por ela, nem sobre ela. Talvez,
se submetido a um saber, a um manual nosológico, esta nomenclatura se associe
algum significado. Mas não é isso que devemos ouvir num trabalho analítico,
tampouco partimos de um saber já dado sobre o sujeito que o silencie de antemão
e lhe traga respostas: ao marcarmos a segunda sessão, Maria me interroga: “Na
semana que vem, você vai me ensinar a não ter mais essas crises?”
Mostra-se
a expectativa de um saber que partiria da dedução do universal ao particular ou
pela projeção do particular em universal. Desse modo, a nomeação das formas de
sofrimento psíquico, segundo um vocabulário estático e normativo, apoiaria-se
na exclusão da singularidade e no evento que caracteriza a estrutura dramática
no qual o sofrimento pode ser apreendido. Entretanto, o analista não responde
deste lugar que é marcado pela compreensão. O saber produzido em análise
constitui-se a partir dos ditos do analisante, aliás ele reside unicamente
nesses ditos. É o que se pressupõe na regra fundamental da análise: que o saber
suposto está do lado do analisante e não do analista.
Por
outro lado, se operássemos a partir do discurso do mestre, onde em tese há o
saber total, onde não há dúvidas, o que fica escamoteado neste laço social é o
que é primordial para fazer funcionar o discurso do psicanalista: $. No exemplo
de Maria, que ao final da primeira sessão pergunta se no próximo encontro ela
será ensinada a se livrar de suas crises, mais precisamente, do que há de
aflitivo em seu sintoma, serve de exemplo para traçarmos esse contraponto. A
estranheza demonstrada na porta de saída e, antes apresentada após a renovação
do pedido para que falasse livremente, tendo já sido citado o quadro de sua
doença, deveu-se ao fato de nada ter sido produzido após a convocação de um
saber que deixasse de apontar para sua divisão. Em outras palavras, ao dizer
“tenho síndrome do pânico” e ponto final, esperava-se uma série de orientações
contra este mal-estar, conforme o que confidenciou na sessão seguinte: “Isso
aqui é novo para mim, os médicos que eu procurei logo me receitavam alguma
coisa depois que eu descrevia as minhas crises”.
Dito de outra forma, a estranheza foi a partir
da resposta dada (ou a falta dela) que divergia da habitual de acordo com a
ordem médica que aqui aproximaremos do discurso do mestre. O médico (S1) se
dirige a um saber-fazer, a uma autoridade absoluta, ao saber científico (S2), e
o faz produzir seu objeto (a): o paciente enquanto corpo a ser tratado,
destituído de sua subjetividade, apartada da verdade sobre sua divisão. O laço
social construído no discurso médico evidencia a exclusão da consideração à
subjetividade, seja do médico, seja do paciente. O propósito desse discurso é
fazer o saber científico trabalhar para obter a satisfação da cura, de agir
sobre o corpo doente, corpo em posição de objeto de cuidados.
Daí
que podemos trabalhar com o significante “Procura” por um tratamento, numa Pró-Cura, cuja resposta a esta demanda
dada pelo analista, marcada pelo discurso inaugurado por Freud, diverge das
terapias e da ordem médica.
Se
no campo médico, o sintoma é tomado como um sinal, um signo da doença, a forma
visível da doença e não inclui o sujeito que fica dele exilado, para a
psicanálise, o sintoma é lido como uma produção subjetiva, uma manifestação do
inconsciente (FREUD, 1926b) e ao invés de ser silenciado, é chamado para a
conversa.
Ora,
será a falta que vai fazer o sujeito buscar análise e é ela que o faz falar.
Portanto, há de se suportar a demanda, até porque a dimensão do desejo está
para além da demanda. Daí a indicação de Lacan (1958) de que o analista deve
ser um tanto “morto” e não cair no eixo imaginário para onde ele será sempre
solicitado. O analista não compreende, mas supõe que há uma “outra coisa” no
dito do paciente, já que o fundamento do discurso é um “mal-entendido”.
A
que o sintoma está respondendo, que gozo isso vem delimitar? Sintoma que surge
como significado, mas readquire sua dimensão de significante, implicando
sujeito e desejo. A constituição do sintoma analítico é correlata ao estabelecimento
da transferência. O analista se transforma gradativamente no destinatário do
sintoma o que pressupõe que ele faça parte do sintoma, ou ainda, que ele esteja
no lugar da causa do sintoma. Portanto, o analista não ocupa a posição da
verdade, mas sim, a de enigma. Em consequência, o sujeito se dirige ao analista
com a pergunta: “o que isso quer dizer?”
Sobretudo
em seus Seminários VII, VIII, XI e em algumas de suas produções dos Escritos
como “Direção do tratamento” e “Do Trieb
e do desejo do psicanalista” Lacan nos fala a respeito do que considera a
função essencial em torno da qual gira o movimento da análise: o desejo do
analista. A princípio falar em desejo do lado do analista, não se coaduna com a
ideia de que o único desejo em causa numa análise está do lado do analisante.
De fato, o analista não funciona como sujeito, mas como objeto, fazendo-se
semblante de objeto a, de modo que o desejo do analista, que está sendo
abordado nessa mesa, não diz respeito à subjetividade do analista que seria
afetada no contexto do tratamento. Mas o desejo do analista é o que viabiliza
uma análise, o que quer dizer resumidamente, conduzir o sujeito ao término da
análise, no confronto com o vazio o qual o desejo, como desejo do Outro, contorna.
“Levar uma análise a seu término é se defrontar com esse limite, onde todo
desejo tem início.” (RINALDI, 1996, p. 71).O desejo do analista é, portanto,
ponto central da ética da psicanálise, fruto de um processo de final de
análise, visto que no final de análise, temos um analista. “A ética da
psicanálise é uma ética da castração, uma vez que não há nenhum bem, pois a
Coisa não há” (RINALDI, 1996, p. 71).
O
que preserva o desejo do analista é este dirigir-se não à demanda do
analisante, frustando-a ou satisfazendo-a, mas sim, aos significantes que se
revelam no próprio discurso do analisante os quais, mais do que decifrações, se
propõem como novos enigmas no lugar dos sintomas, relançando assim o sujeito na
direção da sua verdade e preservando, ao mesmo tempo, o lugar da falta.
No
caso de Maria, já na quinta ou sexta sessão, durante seu esforço em fazer as
mais minuciosas descrições das crises de pânico, surge um exemplo da escuta a
qual nos dirige ao significante, orientados pela atenção flutuante e sustentada
no desejo do analista: “Toda vez que eu preciso me posicionar em situações de
conflito, eu sinto as crises. Eu não gosto de ter que me pronunciar, ter que
confrontar alguém. Lembro que quando criança eu também era assim. Quando um
professor me fazia alguma pergunta, eu não respondia, ficava em silêncio mesmo,
porque aí, ele não me perguntaria mais e eu não precisaria falar nunca. Por
mim, eu ficaria sempre no me canto, esquecida.” Se "(...)nada fazemos a
não ser dar à fala do sujeito sua pontuação dialética(...)" (LACAN
1988/1953, p. 311), apenas perguntei: “Você queria ficar esquecida?”
Decorreram-se alguns segundos em silêncio, até que ela mesma disse: “Esquecida
de quê, né?” Saltamos de um silêncio a outro.
Leonardo de Miranda Ferreira é psicólogo formado pela UFRJ, Especialista em Psicanálise e Saúde Mental (UERJ), Mestre e doutorando em Psicanálise, Clínica e Pesquisa (UERJ). Coordena e leciona no curso de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura no Centro Universitário Celso Lisboa. É membro associado do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise sessão Rio.
Contatos: mirandaufrj@gmail.com e WhatsApp 99389-0932