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18 de outubro de 2017

Dica de leitura

Texto de Marie-Hélène Brousse sobre identidade e gênero, publicado no blog da XXI Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise - MG.



Por Marie-Hélène Brousse

O século XX viu crescer um movimento de reivindicação que tinha suas raízes no que chamarei a revolução universalista: o feminismo. O século XXI vê o desdobramento de um novo movimento de reivindicação que mobiliza outro significante, um significante novo: o gênero. O termo não é novo. Pertence à língua desde a antiguidade e designa a classificação de conjuntos relacionados por algumas similitudes. Quase universalmente presente na gramática das línguas – masculino, feminino ou neutro – associado ao nome, inscreve a marca da diferença sexuada no funcionamento das línguas chamadas naturais. Se o termo, polissêmico, é antigo, o uso que se faz atualmente do mesmo e os estudos que o promovem não os são.

Conseguiu impor-se e reorganizar o conjunto dos discursos. Este potencial obriga, com efeito, levá-lo em conta de maneiras muito diferentes e inclusive antagonistas. Está ligado a outros dois significantes de crescente importância no discurso: identidade e minoria.

Identidade e gênero: algumas referências

Sou psicanalista e, portanto, abordarei o gênero e a identidade a partir desta disciplina. Algumas referências são necessárias. A primeira concerne à linguagem. Nossa matéria, essa com a qual operamos, é a linguagem, - e Lacan a põe em evidência de maneira retroativa em sua leitura de Freud - a língua falada de todos os dias, a linguagem corrente em sua materialidade, o som. Porém, essa linguagem está moldada por um discurso que Lacan formalizou, o discurso do mestre. O inconsciente, tal como se manifesta na análise, é seu oposto. A psicanálise não é uma ciência das profundezas da psique, é uma disciplina do que retorna. A cadeia da palavra do analisante, tomada na estrutura do discurso do mestre, segundo uma topologia de banda de Moebius, dá a volta. Como as línguas naturais, os discursos se transformam e os significantes-mestres que orientam os efeitos de sentido, de sentido comum, surgem e declinam. O gênero substituiu o sexo como significante mestre (Sexe/Gender). Esta substituição tem, evidentemente, implicações e consequências.

Os discursos de gênero têm sido introduzidos majoritariamente pela língua inglesa e têm conhecido primeiro um êxito crescente nos USA. Os assuntos da vida sexual sempre tiveram nos USA, assim como no Reino Unido, uma incidência política mais forte que na França. Sem dúvida as raízes puritanas e protestantes presentes no discurso em língua inglesa têm efeitos diferentes dos engendrados pelo catolicismo. A dificuldade para traduzir nesta língua, de maneira adequada, o termo lacaniano de Gozo, é prova disso. O termo gênero evita o equívoco sempre presente no sexo que, masculino ou feminino, assegura uma função classificatória e, indissociável de Eros, tem sempre um valor erótico na língua. Além disso, o termo gênero sai do binário construído com a reprodução para introduzir um terceiro termo, o neutro. Poderia sustentar cada uma dessas afirmações em elementos da psicopatologia da vida cotidiana: utilização de banheiros públicos, reivindicação de neutralidade sexual escutada há três anos ao vivo em um evento paralelo sobre The Empowerment of Women na ONU, na entrevista com o professor Jack Habelstram do departamento da American Studies and Ethnicity, Gender Studies and Comparative Literature de la Universidade do Sul da Califórnia, especialista em estudos Queer. O enunciado da disciplina, sem dúvida bastante complicado, que acabo de citar por inteiro, mostra que o significante “gênero” está em correlação com o de “etnia” e o de “minorias” e o “Queer”. Esta entrevista está publicada no nº 2 de The Lacanian Review, “Sex all over the palce”, título dado por outra universitária estadunidense, Joan Copjec, muito conhecida por ter introduzido e publicado Lacan nos USA – particularmente Televisão – na revista que ela dirigia então, October. Se o gênero já não determina o sexo na suposta diferença, reduzida à anatomia, entre homem e mulher, surgem então duas perguntas:

O gênero substitui a identidade sexual? Onde se muda a função erótica que os “sexos masculino ou feminino” situavam, ou pretendiam situar, a serviço dos sistemas de parentesco, sob o controle da anatomia? Resposta: ”all over the place”.

Uma modificação histórica do discurso

A psicanalista que sou aborda os debates e enfrentamentos atuais sobre gênero e identidade de uma maneira não polêmica. A psicanálise sabe do poder dos significantes mestres sobre os parlêtres, porém sabe também que este poder se baseia em dois elementos: o poder dos semblantes em geral e as condições para que um significante, sempre vinculado a uma época, possa, mais além de seu surgimento forçosamente minoritário, impor-se majoritariamente como dominante. A partir desse lugar tem, então, função de verdade. Um estudo crítico da identidade e do gênero é a ocasião para a psicanálise, não somente para continuar elaborando a noção do discurso do mestre, mas também para estudar – em tempo real – sua modificação histórica em seu percurso pelas ocorrências da palavra dos analisantes. É um dos modos de desdobrar a psicanálise de orientação lacaniana em suas últimas inovações. Assinalo assim, o estudo que Jacques-Alain Miller fez do ultimíssimo Lacan extraindo uma modificação do discurso e da prática analítica sobrevinda neste último período de seu ensino: o acréscimo ao inconsciente freudiano, obtido por decifrado e transferência, de outro inconsciente nomeado como inconsciente real. É mais acertado dizer que ao inconsciente transferencial se acrescenta o inconsciente real, segundo a topologia posta em evidência do laço entre sexualidade fálica e sexualidade não-toda fálica. O inconsciente real não está fora do valor fálico, porém não está completamente regido pela metáfora. O sujeito do inconsciente não é o único objeto em jogo na análise. O corpo falante também joga a partida.
para ler o texto completo, clique aqui.


Fernanda Pimentel é psicanalista e atualmente cursa doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ, pesquisando sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.