.
.

9 de julho de 2016

Exaustos-e-correndo-e-dopados, por Eliane Brum

A jornalista Eliane Brun dispensa qualquer apresentação, principalmente para os leitores do ViaFreud, que já estão acostumados a me ver compartilhando seus escritos (veja aqui, aqui ou aqui, por exemplo). Precisa, como sempre, ela aborda, nesse texto, os frequentes mal estares da cultura contemporânea. 


Exaustos-e-correndo-e-dopados

Eliane Brum
Fonte: El País
Nos achamos tão livres como donos de tablets e celulares, vamos a qualquer lugar na internet, lutamos pelas causas mesmo de países do outro lado do planeta, participamos de protestos globais e mal percebemos que criamos uma pós-submissão. Ou um tipo mais perigoso e insidioso de submissão. Temos nos esforçado livremente e com grande afinco para alcançar a meta de trabalhar 24X7. Vinte e quatro horas por sete dias da semana. Nenhum capitalista havia sonhado tanto. O chefe nos alcança em qualquer lugar, a qualquer hora. O expediente nunca mais acaba. Já não há espaço de trabalho e espaço de lazer, não há nem mesmo casa. Tudo se confunde. A internet foi usada para borrar as fronteiras também do mundo interno, que agora é um fora. Estamos sempre, de algum modo, trabalhando, fazendo networking, debatendo (ou brigando), intervindo, tentando não perder nada, principalmente a notícia ordinária. Consumimo-nos animadamente, ao ritmo de emoticons. E, assim, perdemos só a alma. E alcançamos uma façanha inédita: ser senhor e escravo ao mesmo tempo.
Como na época da aceleração os anos já não começam nem terminam, apenas se emendam, tanto quanto os meses e como os dias, a metade de 2016 chegou quando parecia que ainda era março. Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época. E já percebemos que essa condição humana um corpo humano não aguenta. O corpo então virou um atrapalho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo. Pelo menos até conseguirmos nos livrar desse corpo que se tornou uma barreira. O problema é que o corpo não é um outro, o corpo é o que chamamos de eu. O corpo não é limite, mas a própria condição. O corpo é.

Icarus, de David LaChapelle

Os cliques da internet tornaram-se os remos das antigas galés. Remem remem remem. Cliquem cliquem cliquem para não ficar para trás e morrer. Mas o presente, nessa velocidade, é um pretérito contínuo. Se a internet parece ter encolhido o mundo, e milhares de quilômetros podem ser reduzidos a um clique, como diz o clichê e alguns anúncios publicitários, nosso mundo interno ficou a oceanos de nós. Conectados ao planeta inteiro, estamos desconectados do eu e também do outro. Incapazes da alteridade, o outro se tornou alguém a ser destruído, bloqueado ou mesmo deletado. Falamos muito, mas sozinhos. Escassas são as conversas, a rede tornou-se em parte um interminável discurso autorreferente, um delírio narcisista. E narciso é um eu sem eu. Porque para existir eu é preciso o outro.
Há tanta informação disponível, mas talvez estejamos nos imbecilizando. Porque nos falta contemplação, nos falta o vazio que impele à criação, nos falta silêncios. Nos falta até o tédio. Sem experiência não há conhecimento. E talvez uma parcela do ativismo seja uma ilusão de ativismo, porque sem o outro. Talvez parte do que acreditamos ser ativismo seja, ao contrário, passividade. Um novo tipo de passividade, cheia de gritos, de certezas e de pontos de exclamação. Os espasmos tornaram-se a rotina e, ao se viver aos espasmos, um espasmo anula o outro espasmo que anula o outro espasmo. Quando tudo é grito não há mais grito. Quando tudo é urgência nada é urgência. Ao final do dia que não acaba resta a ilusão de ter lutado todas as lutas, intervindo em todos os processos, protestado contra todas as injustiças. Os espasmos esgotam, exaurem, consomem. Mas não movem. Apaziguam, mas não movem. Entorpecem, mas será que movem?
Sobre esse tema há um pequeno livro, precioso, chamado sugestivamente de Sociedade do Cansaço (Editora Vozes). Seu autor é o filósofo Byung-Chul Han, um coreano radicado na Alemanha que se tornou professor universitário de filosofia e estudos culturais em Berlim. Neste livro, Han faz um diálogo crítico com pensadores como Alain Ehrenberg, Giorgio Agamben, Michel Foucault, Hanna Arendt, Walter Benjamin e Friedrich Nietzsche, entre outros. Já meu diálogo com ele é por minha própria conta e risco. Sobre nossa nova condição, Han diz:
“A sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são sociedades livres. Elas geram novas coerções. A dialética do senhor e escravo está, não em última instância, para aquela sociedade na qual cada um é livre e que seria capaz também de ter tempo livre para o lazer. Leva, ao contrário, a uma sociedade do trabalho, na qual o próprio senhor se transformou num escravo do trabalho. Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor. Assim, acabamos explorando a nós mesmos. Com isso, a exploração é possível mesmo sem senhorio”.
Veja o artigo na íntegra aqui.


Fernanda Pimentel é psicanalista e atualmente cursa doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ, pesquisando sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.