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31 de maio de 2013

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Entrevista


Entrevista que concedi ao site Lacaneando em abril de 2013

"A Psicanalista Fernanda Pimentel fala sobre o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) e os Transtornos Alimentares e quais os tratamentos disponíveis para tratar esses males do mundo moderno.

Lacaneando – O que é imagem corporal e quando a preocupação com um defeito no corpo pode ser chamado de Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) ou Dismorfobia?
Fernanda Pimentel – A imagem corporal é a forma como compreendemos nosso corpo, ou seja, como percebemos a nós mesmos. Essa imagem será influenciada pelo meio em que vivemos e pelas situações que enfrentamos. Esse conceito tem demonstrado sua complexidade por se tratar de avaliações perceptivas do esquema corporal, mas atravessadas pelas dimensões afetivas e sociais.
O Transtorno Dismórfico Corporal é um transtorno psicológico caracterizado pela preocupação obsessiva com o corpo, com a imagem como um todo, com o peso ou com algum detalhe, defeito inexistente ou mínimo, sendo esse aspecto obsessivamente imaginado ou acentuado excessiva e desproporcionalmente.
O limite entre uma preocupação excessiva e uma patologia é muito tênue. Numa época onde a preocupação com a aparência se destaca pelos excessos, onde é comum o uso exagerado de cosméticos e intervenções cirúrgicas, dietas inconsequentes e exercícios exagerados, fica difícil identificar onde começa a patologia. Penso que quando estas preocupações começam a afetar outros aspectos da vida, como o convívio social, trabalho e relacionamentos ou alterar drasticamente a rotina de exercícios e alimentação, já sugerem a presença deste transtorno.
Lacaneando – Qual a maior fase de incidência de TDC e por que? Quais comportamentos sugerem que uma pessoa esteja sofrendo de TDC?
Fernanda Pimentel – Os sintomas relativos à imagem corporal são observados com mais frequência nos adolescentes, de ambos os sexos, estando relacionada com as transformações ocorridas na puberdade. Mesmo assim, pode ocorrer também em adultos e, neste caso, é mais comum em mulheres, embora também seja encontrado em homens.
Excessos de tratamentos estéticos, dietas e exercícios exagerados e, como foi mencionado, prejuízo nos relacionamentos pessoais são comportamentos que sugerem o TDC.
É importante lembrar que o Transtorno Dismórfico Corporal não indica, necessariamente, um Transtorno Alimentar, embora um Transtorno Alimentar sempre remeta a uma preocupação excessiva com o corpo ou até mesmo ao Transtorno Dismórfico Corporal.
Lacaneando – O que são os transtornos alimentares (anorexia, bulimia e transtorno da compulsão alimentar periódica) e como detectá-los? Onde as pessoas que sofrem com esses transtornos podem buscar apoio?
Fernanda Pimentel – Os Transtornos Alimentares são alterações do comportamento alimentar e estão descritos nos DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual, IV edition) e CID-10 (Classificação Internacional de Doenças, 10ª edição) sob a forma de Anorexia Nervosa, Bulimia Nervosa e Transtornos Alimentares Sem Outra Especificação (TASOE), onde se encontra o Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica.


No Rio de Janeiro existem núcleos de atendimento na UFF e na Santa Casa de Misericórdia.

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Lacaneando – Quais os sintomas ou critérios para identificar, por exemplo, uma anorexia nervosa, a bulimia nervosa e TCAP?
Fernanda Pimentel – Os atuais sistemas classificatórios de transtornos mentais ressaltam duas entidades nosológicas principais: a Anorexia Nervosa e a Bulimia Nervosa.
A anorexia é caracterizada pela recusa alimentar e drástica perda de peso, associados ao medo de engordar, distúrbio de imagem corporal e amenorréia.
A Bulimia é caracterizada pelo episódio de compulsão alimentar (ingestão de grande quantidade de alimento em pouco tempo, associado a um sentimento de falta de controle sobre o comportamento alimentar), seguido por métodos compensatórios (ou purgativos) que visam evitar o ganho de peso, como vômitos, uso de laxantes e diuréticos. O medo mórbido de engordar e os distúrbios de imagem também estão presentes.
Embora classificados separadamente, os dois transtornos acham-se intimamente relacionados por apresentarem psicopatologia comum: uma ideia prevalente envolvendo a preocupação excessiva com o peso e a forma corporal, que leva as pacientes a se engajarem em dietas extremamente restritivas ou a utilizarem métodos compensatórios para alcançarem o corpo idealizado.
A Compulsão Alimentar Periódica se enquadra no grupo dos Transtornos Alimentares Sem Outra Especificação (TASOE). Esta é descrita como um transtorno caracterizado pela prevalência destes mesmos episódios de compulsão alimentar (ingestão de grande quantidade de alimento em pouco tempo, associado a um sentimento de falta de controle), contudo, sem a utilização de método compensatórios, como na Bulimia, o que leva ao ganho de peso.
Lacaneando – Podemos pensar nos sintomas que acometem o corpo como uma tentativa de fuga? Ou seja, no corpo recusado da anoréxica e no corpo estranho da bulímica? Afinal, o que o sintoma anoréxico sustenta?
Fernanda Pimentel – Não necessariamente uma fuga. Pode ser uma forma de barrar uma figura materna invasiva, uma forma de convocar o outro ou até mesmo uma forma de sustentar algo que foi impossível de ser feito através das palavras, por exemplo.
O mais importante é investigar, caso a caso, o que aquele sintoma sustenta.
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Lacaneando – O que a paciente anoréxica mostra através do seu sintoma? O que a psicanálise pode dizer da anorexia?
Fernanda Pimentel – A psicanálise prioriza o diagnóstico diferencial entre neurose e psicose a partir de um critério estrutural. Partindo deste ponto, priorizamos a estrutura que sustenta o sintoma, já que um mesmo sintoma – a recusa alimentar anoréxica – se constitui de forma diferente em se tratando de estruturas distintas. Dessa forma, o que é levado em consideração no diagnóstico estrutural em psicanálise é o modo como o sintoma se constitui e sua função, e não o fenômeno evidenciado. Em outras palavras, não é fenômeno sintomático que nos guia, mas a estrutura de funcionamento psíquico.
Alguns autores psicanalistas vêm trabalhando hipóteses que afirmam que o sintoma anoréxico contradiz o conceito de sintoma clássico postulado pela psicanálise clássica freudiana. Se na época de Freud o sintoma foi definido como retorno de uma mensagem e uma função de tratamento da angústia, nos dias atuais, o que se apresenta na clínica são sintomas que apontam a invasão da pulsão de morte e a pregnância de um supereu feroz e avassalador. Diferente do sintoma como mensagem, o que vemos na clínica atual é uma variedade sintomática referida à invasão pulsional no corpo não barrada pela ação do recalque, visto que este desempenha sua função de forma precária.
Lacaneando – No caso dos homens, os sintomas, o quadro clínico e a resposta ao tratamento são os mesmos encontrados nas mulheres? Quais as particularidades de cada sexo?
Fernanda Pimentel – Os homens são minoria quando se fala em Transtornos Alimentares, mas estes números têm aumentado. A incidência em mulheres é estimada em 8 a cada 100 mil indivíduos, enquanto em homens seria de 0,5 a cada 100 mil. Os homens apresentam menos comprometimento em relação a auto imagem e em função disso a reposta ao tratamento pode ser melhor.
Lacaneando – O que dizer sobre os grupos de adolescentes anoréxicas e bulímicas que se reúnem em blogs e comunidades para se apoiar e competir na permanência do sintoma, a exemplo do Pró Ana/Pró Mia?
Fernanda Pimentel – Elas fazem um trabalho na contramão do nosso… Os Blogs e sites pró Anorexia e Bulimia criam um laço social e alimentam a manutenção do sintoma. É inquestionável a nocividade destes conteúdos.
Mas sempre que me pergunto sobre os perigos destes blogs, penso nas revistas femininas, principalmente as sobre moda e corpo, e questiono se estes conteúdos são tão diferentes assim… É claro que as revistas vendidas em banca de jornal não defendem a anorexia como estilo de vida, como os blog pró ana e mia, mas não ficam muito atrás no que diz respeito ao culto da magreza ou estímulo de uma cultura lipofóbica e autoritária, onde as diferenças não tem vez.
Lacaneando – Quais os tratamentos disponíveis para tratar esses males do mundo moderno? Os medicamentos sozinhos dão conta desses distúrbios ou deve-se buscar uma associação que também inclua tratamentos psicoterapêuticos e análise, logicamente, levando-se em conta, a singularidade de cada caso?
Fernanda Pimentel – Com certeza somente o tratamento farmacológico não dá conta de aplacar os mal-estares da contemporaneidade. Na verdade, não há um medicamento específico para anorexia ou bulimia, mas os antidepressivos são usados habitualmente, porque essas pacientes costumam apresentar também sintomas relativos à depressão.
O que se recomenda é um acompanhamento multidisciplinar, com psicólogos, nutricionistas e psiquiatras atuando em conjunto.
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Lacaneando – Você acredita que o mundo moderno, com todos os seus mal-estares, como o culto exagerado ao corpo, o stress, a depressão, tem ajudado a agravar esses transtornos?  Essas novas formas de mal-estar - anorexias, bulimias, síndromes do pânico, toxicomanias, depressões, entre outros – desafiam a prática clínica psicanalítica com uma organização sintomática cheia de especificidades. A agressividade do próprio sintoma que se evidencia na deterioração e mortificação do corpo e uma defasagem simbólica que aparece na clínica como uma extrema dificuldade de dizer sobre o que se sente, apresentam um terreno árido para o analista trabalhar?
Fernanda Pimentel – Com certeza a época atual pode agravar estes sintomas, mas é fundamental não atribuir as causas destes sofrimentos apenas à cultura e ao estilo de vida. O que determina um sintoma é a economia pulsional envolvida.
Estas novas formas de mal-estar aplacam o corpo em atravessar o registro simbólico. O terreno árido é justamente esta defasagem simbólica que fica evidente na clínica como uma dificuldade de articulação simbólica, de um recuo da cadeia associativa, ou dito de outra forma, de falar e questionar sobre o próprio sofrimento. Nestes casos o sujeito só sente.

Fernanda Pimentel é Psicanalista, graduada em Psicologia, com Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ e Especialização em Psicanálise e Laço Social pela UFF. Atualmente é integrante do LAPSICON – Laboratório de Pesquisa das Psicopatologias Contemporâneas – UFF CNPq. 
Atendimento clínico de crianças, adolescentes e adultos em Niterói (Icaraí) e no Rio de Janeiro (Copacabana), coordenação de grupos de estudos, seminários e supervisão clínica.
Contato: (21)8123-1472

A vida tornou-se uma patologia?


Artigo da jornalista Eliane Brum para o site da Epoca.


Acordei doente mental

A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”

A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”. 

A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro. 

Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa? 

Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão feliz – e saudável. 

O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez pioresmudanças da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.  



Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis". 

A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Timessobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.  

Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinsicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.

Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health(Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (...) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve gerar controvérsias.

A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.

A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.
Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes. 

Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios. 

Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes. 

Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo. 
E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.