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14 de junho de 2012

Pink Floyd, loucura, Lacan & Rock n' Roll

Texto de Christian Ingo Lenz Dunker (psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da USP) sobre a loucura na produĆ§Ć£o artistica marcada pela ruptura, delĆ­rio, descompasso e estranhamento radical. Exatamente o que experimentamos ao escutar Pink Floyd.

Eu queria que vocĆŖ estivesse aqui 

Pink Floyd estĆ” para a mĆŗsica como Joyce estĆ” para a literatura: suas obras sĆ£o marcadas por rupturas de pensamento e uma espĆ©cie de “loucura produtiva”

Quando se pensa em rock a primeira associaĆ§Ć£o costuma ser com ruptura, rebeldia e contracultura. Desde seu inĆ­cio esse tipo de mĆŗsica tenta pensar o futuro antes que ele chegue. Pink Floyd Ć© uma banda anĆ“mala em seu gĆŖnero, uma experiĆŖncia musical sobre a impossibilidade de esquecer e sobre o custo devastador que um coletivo deve pagar para continuar tornando-se o que Ć©. Pink Floyd Ć© uma banda em torno de um personagem ausente e ao mesmo tempo onipresente. Quatro alunos de arquitetura na Londres do final dos anos 1960 sĆ£o acolhidos por um intelectual de esquerda decidido a dar expressĆ£o ao comunitarismo emergente. Dos quatro, foi Syd Barrett quem escreveu todas as letras dos dois primeiros Ć”lbuns. Insistindo na importĆ¢ncia da equivalĆŖncia entre forƧa dramatĆŗrgica e dimensĆ£o musical, introduzindo mĆ”quinas de retorno e ressonĆ¢ncia nos shows e valorizando a experiĆŖncia da luz e da iluminaĆ§Ć£o. NĆ£o Ć© uma coincidĆŖncia que The wall – O filme tenha sido a Ćŗnica produĆ§Ć£o relevante na passagem do rock para o cinema.



Depois de um ano de estrada Syd Barrett enlouqueceu. Olhar perdido, impossibilidade de reconhecer seus colegas, sentimento de perseguiĆ§Ć£o: o alheamento tĆ£o comum em outros astros que permanecem “produzindo rock” no interior de sua loucura deu lugar a notas fora de lugar dedilhadas durante os shows e desafinamentos. Permanecia sentado no palco durante toda a apresentaĆ§Ć£o. Muitas bandas se viram privadas de seu gĆŖnio fundador, mas mesmo com a gradual entrada de Dave Gilmour o lugar de Syd jamais pĆ“de ser esquecido. O “verdadeiro” Pink Floyd nĆ£o estĆ” nem na formaĆ§Ć£o original, nem nas sucessivas tentativas de se tornar independente, ora sob lideranƧa de Roger Waters, ora sob domĆ­nio de David Gilmour – mas na impossibilidade de escapar do “I wish you were here” (Eu queria que vocĆŖ estivesse aqui).



Para um leitor de Jacques Lacan Ć© fĆ”cil perceber que Pink Floyd estĆ” para a mĆŗsica como Joyce estĆ” para a literatura. Nos dois casos a produĆ§Ć£o artĆ­stica Ć© marcada por flutuaĆ§Ć£o narrativa, rupturas de pensamento, descompasso entre mĆŗsica e letra, neologismos, experiĆŖncias de radical estranhamento em relaĆ§Ć£o ao corpo, com Ć  linguagem e o outro. Aparecem epifanias, sentimentos de irrealidade, divergĆŖncia entre saber e crenƧa, sem falar nas alucinaƧƵes e nos delĆ­rios. A psicose Ć© “reapropriada” por uma forma de loucura produtiva.



Quando Barrett trouxe sua Ćŗltima composiĆ§Ć£o Have you got it yet? (JĆ” pegou?), cada vez que o grupo tentava executĆ”-la Syd alterava a progressĆ£o de acordes e o ritmo, de tal forma que a prĆ³pria performance definia-se por esta exclusĆ£o, deixando Roger Waters, Nick Mason e Richard Wright com a impressĆ£o de que nĆ£o tinham “pego” a mĆŗsica. Have you got it yet? Ć© uma dessas interpelaƧƵes alusivas, tĆ£o frequentemente presentes na psicose, que nos fazem perguntar: “Mas pegar o que mesmo?”. E diante de nossa estĆŗpida pergunta verificar que “ainda nĆ£o pegamos”. Ɖ assim que Barrett estĆ” fora do discurso – mas nĆ£o fora da linguagem. Ɖ assim que ele pode fazer parte de Pink Floyd como experiĆŖncia de inclusĆ£o social da psicose, registro vivo de que hĆ” diferenƧas que nĆ£o valem a pena serem esquecidas.



E aqui nĆ£o se trata apenas da perda, da culpa e do luto pela incapacidade de mantĆŖ-lo como membro funcional de um grupo de rock, mas da pergunta radical que diz respeito ao que devemos fazer com as questƵes colocadas pelo que se inscreve em uma Ć©poca, em uma cultura, em uma histĆ³ria, em uma banda. Pink Floyd mostra, tal como o caso de AntĆ­gona e das tragĆ©dias em geral, que hĆ” algo de universal nesta experiĆŖncia particular de loucura. Algo que nossas leis e nossa forma de vida ainda nĆ£o conseguem reconhecer, mas que acima de tudo precisa ser posto em toda extensĆ£o de sua contraditoriedade, criando o limite da liberdade, sem a qual ficamos mais pobres.

Texto publicado na Mente&CĆ©rebro