Em entrevista à Revista Trip, Contardo Calligaris fala de homossexualidade, intolerância, preconceito e homofobia
"Por que a homossexualidade incomoda tanto?"
"Contardo Calligaris é um homem acostumado a temas espinhosos. O psicanalista italiano de 63 anos, nascido em Milão e radicado em São Paulo, assina colunas toda quinta-feira na Folha de S.Paulo, e a trinca sexo, amor e relacionamentos é uma de suas constantes. Nesta edição de Trip dedicada à diversidade sexual, convidamos o terapeuta para refletir sobre por que, afinal, a homossexualidade provoca tanto incômodo. “Ninguém se incomoda com algo a não ser que isso seja objeto de um conflito interno. O homofóbico tem dificuldade em conter traços de homossexualidade que estão dentro dele”, responde Contardo. Segundo o psicanalista, as piadinhas sobre gays, tão comuns nas rodas de homens, celebram um laço que, no fundo, é homossexual. “Ninguém conta uma piada de veado para uma mulher, porque para ela é uma coisa totalmente ridícula. Ela vai virar e dizer: ‘Hein?’.”
Na entrevista a seguir, Contardo aponta para o enorme preconceito contra gays e lésbicas que ainda persiste no Brasil, fala sobre o papel das novelas na formação da opinião pública e defende a aprovação da lei que criminaliza a homofobia. “Essa garantia legal é crucial”, afirma. O psicanalista sai em defesa do “politicamente correto”, que, aqui, não funciona como nos EUA. “Lá, alguém como o [deputado federal Jair] Bolsonaro já estaria na cadeia há muito tempo”, acredita. Seu desejo, diz, é que a sociedade avance para um estágio em que se possa viver livremente de forma “junta e misturada”, ou seja, em uma realidade na qual ser heterossexual ou homossexual não seja tão importante para definir as nossas identidades.
Por que a homossexualidade incomoda tanto?
Vários psicanalistas e psicólogos já formularam sobre isso. Existe quase
uma regra que quase nunca se desmente na prática. Quando as minhas
reações são excessivas, deslocadas e difíceis de serem justificadas é
porque emanam de um conflito interno. Por que afinal me incomodaria meu
vizinho ser homossexual e beijar outro homem na boca? De forma simples, o
que acontece é: “Estou com dificuldades de conter a minha própria
homossexualidade, então acho mais fácil tentar reprimir a
homossexualidade dos outros, ou seja, condená-la, persegui-la e
reprimi-la, se possível até fisicamente porque isso me ajuda a conter a
minha”. O problema de toda neurose é que a gente reprime muito mais do
que precisa. A neurose multiplica a repressão. Se eu tenho uma vaga
impressão de que eu poderia ter uma atração por um colega de classe,
então acabo construindo uma série de comportamentos que me convençam de
que não só não tenho atração nenhuma como eventualmente posso chamar
esse colega de veado, criar um grupo de pessoas que compartilham daquela
opinião e esperar ele sair da escola para enchê-lo de porrada.
O homofóbico necessariamente é um gay enrustido?
Eu não diria que é um gay enrustido. A homofobia responde a uma
necessidade de reprimir uma parte da sexualidade, mas não significa
necessariamente que essa pessoa seja homossexual. É alguém que está
reagindo neuroticamente a traços de homossexualidade que estão em cada
um. Isso já é suficiente para criar a homofobia.
A sociedade brasileira ainda é muito preconceituosa? O politicamente correto mascara isso?
O politicamente correto no Brasil é muito precário se comparado ao dos
Estados Unidos. Aqui as pessoas se autorizam a dizer coisas que lá
seriam impensáveis. O Bolsonaro já estaria na cadeia há muito tempo. Não
tenho nada contra o politicamente correto, mesmo os seus excessos,
porque não estou convencido de que as falas sejam inocentes. As piadas
de discriminação deveriam ser proibidas. Deveria ser possível agir
legalmente contra isso. Mas, sim, acho que a sociedade brasileira ainda é
fortemente preconceituosa. O engraçado é que as formas mais triviais de
preconceito se expressam em grupos que acabam sendo homossexuais. O
clássico é a piada de veado, que faz todo mundo rir e ocorre numa roda
de homens na padaria. Esses homens celebram rindo um laço entre eles
que, no fundo, é homossexual. Os quatro skinheads que saem à noite para
dar porrada na praça da República substituem o que seria uma
homossexualidade neles batendo em quem eles supõem ser homossexual.
Você é a favor da lei que criminaliza a homofobia?
Sou totalmente a favor. Incitar o ódio e a exclusão não dá. A liberdade
de expressão não justifica ir contra direitos fundamentais.
Como funciona o preconceito das
pessoas que dizem não ter preconceito? Como reagem pais que se
consideram esclarecidos quando descobrem que o filho é gay?
No caso dos pais, tem uma parte da reação que não é necessariamente
homofóbica. Há um sentimento de perda e preocupação. Eles presumem que
não terão netos, isso é uma perda. Eles têm uma apreciação realista da
sociedade. Pensam: “Se o meu filho for gay, a vida dele será mais dura.
Não poderá viver em qualquer lugar, vai ter que morar em grandes
metrópoles. Quando for alugar um apartamento, talvez encontre um dono
que não vai gostar de saber que ele vive com outro homem. Uma noite pode
estar na praça da República e ser agredido. Quando for fazer a queixa
na delegacia, pode ouvir que, se não fosse veado, isso não teria
acontecido. Vai trabalhar numa multinacional e todo mundo vai ter a foto
da mulher ou do marido em cima da mesa. Ter a foto de alguém do mesmo
sexo provavelmente não vai contribuir para o progresso da carreira dele.
Enfim, haverá uma série de limitações”. Pode ser que para nossos filhos
e netos isso evolua, mas a realidade hoje é essa.
Esses pais se culpam? Perguntam: “Onde foi que eu errei?”
Hoje muito menos, o que prova que a homossexualidade está sendo menos
considerada como patologia do que no passado. A homossexualidade é
produzida por uma série de coisas complexas, algumas, aliás, não têm
nada a ver com o tipo de criação que a pessoa recebeu. Responsabilizar
os pais é algo grotesco. Agora, nos anos 70, sim. Eu atendi pais que se
recusavam completamente a aceitar que os filhos eram gays. E tive
pacientes homossexuais que tinham perdido o contato com os pais a partir
do momento em que saíram do armário.
Como você vê a representação dos gays nas novelas?
A existência de gays como personagens positivos ou simplesmente aceitos
tem um efeito importante. A novela das nove é a grande formadora de
opinião no Brasil. Às vezes tem até uma capacidade de antecipar e
transformar a visão sobre as coisas. Nem sempre o que aparece nas
novelas é porque os brasileiros mudaram. Às vezes os brasileiros mudam
porque apareceu na novela. É pequena a antecipação, mas ela existe. A
novela pode se propor a escandalizar um pouco, permitir que as pessoas
pensem um pouco além do que elas pensavam antes.
Homossexualidade é genética ou construída? Ou nem cabe mais essa questão?
É um debate aberto. O que todo mundo sabe hoje é que a genética não é o
destino de ninguém. Mesmo que existisse um gene da homossexualidade,
que, se existe, ainda não foi encontrado, ele precisaria ser posto em
ação. Os nosso genes se realizam ou não a partir de uma série de
questões relacionadas ao ambiente – geofísico e humano. Imaginar que
exista uma separação rigorosa entre o genético e o construído é ingênuo.
As coisas se misturam. O grande argumento a favor da tese de que é
genético é que existem pesquisas com gêmeos que mostram que, em
univitelinos, se um é homossexual a maioria dos irmãos também é. Algo em
torno de 60%. Agora, isso é um argumento a favor da tese? Na verdade, é
um argumento contra porque, se são univitelinos, deveria ser 100%, já
que o patrimônio genético dos dois é rigorosamente igual. O caso é
interessante porque mostra que a coisa é mais complexa.
“O gênero não é o mais importante para definir a sexualidade de alguém. A fantasia define muito mais”
Crianças criadas por casais
homossexuais sofrem de dificuldades específicas? Seu desenvolvimento é
diferente do de crianças de casais heterossexuais?
Isso já está totalmente estabelecido. Há um campo de pesquisas
importante nos EUA e em alguns países da Europa, onde já há um bom tempo
os casais homossexuais foram autorizados a adotar crianças. Está
absolutamente claro que as estatísticas, tanto do futuro da vida sexual
dessas crianças como da patologia eventual delas, são absolutamente
idênticas às das crianças criadas por casais héteros. Acho que isso não
deveria nem mais ser tema de conversa. Porque os resultados estão lá,
são conhecidos.
O preconceito é maior em relação a casais de homens que desejam adotar filhos?
É possível. Até porque um dos grandes mitos da homofobia é que
as pessoas, sobretudo as mais ignorantes, confundem homossexualidade com
pedofilia. Então elas perguntam: “Mas como um casal de homossexuais
masculinos vai adotar crianças? Eles vão estuprá-las”. E a pedofilia
pode ser totalmente heterossexual.
Você já sentiu atração por homens? Teve vontade de beijar e transar com um homem?
Não, atração nesse sentido não… Mas cresci nos anos 60, uma época de amor livre. Tudo aquilo era bastante aberto e misturado.
Deu para experimentar bastante coisa?
Sim.
Você já questionou a sua orientação sexual?
Questionar a orientação sexual já é em si um problema porque, no fundo,
eu não acredito muito nessa distinção entre homossexual e heterossexual
como um divisor de águas. Do ponto de vista da personalidade de alguém, é
um fato muito marginal. Muito mais do que se ela transa com pessoas do
mesmo sexo ou não, o que define uma pessoa é a fantasia sexual com a
qual ela funciona. Um homossexual cuja sexualidade é alimentada numa
fantasia sadomasoquista tem muito mais a ver com um heterossexual com
fantasia parecida do que com outro homossexual que, ao contrário, gosta
de transar ternamente, dando beijinhos. O gênero não é o mais importante
para definir a sexualidade de alguém. A fantasia define muito mais.
Há quem diga que no futuro as
pessoas vão se relacionar independentemente do gênero. Seria tudo meio
“junto e misturado”. Você concorda com isso?
Eu preferiria que fosse assim. A homossexualidade se tornou uma
identidade necessária para tempos de luta. Nos últimos 30 ou 40 anos e
certamente nas próximas décadas ainda terá que se afirmar para que haja
uma paridade de direitos real e concreta. Mas, uma vez retirada essa
necessidade de luta, não sei se a escolha de gênero do objeto sexual
será o mais importante para definir a identidade de alguém… Sou
homossexual ou sou heterossexual. Sim, e daí? Good for you. Não sei se
verei esse novo mundo, mas espero que isto aconteça: que essa identidade
se torne insignificante, pois não será tão necessária."
Fernanda Pimentel é psicanalista, tem mestrado em Psicanálise pela UERJ e pesquisa sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.