O artigo foi publicado na Revista Ágora (vol. 12, nº2, Rio de Janeiro, 2009) e é uma grande dica de leitura!
Introdução
"A
anorexia mental constitui um sintoma que interroga o psicanalista em
sua prática, para além de qualquer afirmação de que estejamos assistindo
na atualidade a um aumento no número de pacientes anoréxicas, tanto nos
consultórios quanto nas instituições de atenção à saúde.
As
descrições clínicas da anorexia remontam a 1689, apesar de os termos
'anorexia nervosa' ou 'anorexia histérica' só terem aparecido na
literatura especializada por volta do ano de 1870, com os trabalhos de
William Gull e Charles Lasègue (BIDAUD, 1998, p.15-16). Cabe apontar que
as descrições deste último são bastante precisas, não só do ponto de
vista dos fenômenos, mas também quanto à apreensão de uma dinâmica
psíquica particular em jogo na condição desses doentes. Daí, Lasègue
referir-se a um "otimismo inexpugnável", a um "consentimento patológico"
e ao surpreendente fato de que a paciente "não suspira pela cura, mas
se compraz na sua condição, apesar de todas as restrições que esta lhe
suscita" (LASÈGUE apud BIDAUD, 1998, p.17).
Mais
recentemente, observa-se que à descrição psiquiátrica clássica do
quadro patológico - incluindo em geral a recusa alimentar derivada de
fatores mentais ou "nervosos", emagrecimento importante e amenorreia -,
acrescentou-se o dado fenomênico de um transtorno da imagem corporal,
sendo este último promovido ao estatuto de fator patognomônico, quando
não etiológico, da doença. A partir daí, tem se tentado inferir que a
anorexia mental seria um sintoma contemporâneo vinculado ao ideal de
corpo magro vigente na sociedade atual. Veremos mais adiante os limites e
contradições dessa concepção.
Quanto
ao campo psicanalítico, notamos que as indicações freudianas são raras e
esparsas. Encontra-se o sintoma anoréxico das jovens meninas ora como
"uma forma de melancolia nos sujeitos de sexualidade não inteiramente
desenvolvida" (FREUD, 1895/1986, p.240) - sendo a perda de apetite
relacionada à perda de libido -, ora como neurose que ocorre "nas
meninas na época da puberdade ou pouco depois, e que exprime a aversão à
sexualidade por meio da anorexia", devendo "ser vinculada com a fase
oral da vida sexual" (FREUD, 1918 [1914]/1986, p.97). Perda de libido de
um lado, aversão à sexualidade do outro, a perspectiva freudiana oscila
entre uma aproximação da anorexia com a melancolia e sua inclusão no
campo da histeria.
Não
deve passar despercebido que o sintoma anoréxico, tanto nas descrições
da psiquiatria clássica quanto na obra freudiana, aparece como um
sintoma feminino por excelência, um sintoma que atinge particularmente
mulheres, e em especial mulheres jovens, fato comprovado por diversas
pesquisas médicas. Cabe nesse momento a pergunta que nos parece
fundamental: qual será a razão dessa esmagadora incidência em mulheres
jovens?
As
contribuições lacanianas ao tema dizem respeito à dialética da demanda e
do desejo. Seguindo esta orientação, adotamos a designação 'anorexia
mental', que põe em relevo a dimensão da recusa ao objeto da necessidade
e ao Outro da demanda. Se "é a criança alimentada com mais amor que
recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo (anorexia mental)"
(LACAN, 1958/1998, p.634), é porque a recusa do alimento visa fazer
surgir o que está para além da demanda alimentar, ou seja, o desejo do
Outro. E também, como escreve Lacan em forma de pergunta, "a criança, ao
se recusar a satisfazer a demanda da mãe, não exige que a mãe tenha um
desejo fora dela, porquanto essa é a via que lhe falta rumo ao desejo"?
(LACAN, 1958/1998, p.634)
Além
disso, verifica-se um empenho no ensino lacaniano em vincular a
anorexia mental a um "comer nada", diferenciado radicalmente de "uma
negação da atividade", de um "não comer". "Graças a este nada, ela (a
criança) faz a mãe depender dela" (LACAN, 1956-1957/1995, p.189), em uma
manobra que inverte a relação inicial de dependência do sujeito em
relação ao Outro materno, a recusa alimentar coloca em jogo o "nada"
como objeto separador.
Recalcati
propõe situar "uma clínica diferencial da anorexia" por meio da
distinção de dois estatutos do "nada" e, assim, "esboçar uma clínica
diferencial do nada". Um primeiro comer "nada" estaria ligado à
histeria, portanto à neurose, em que a recusa alimentar vale como
suporte e escudo do desejo, em oposição à demanda sufocante do Outro,
visando fazer surgir o signo do amor no Outro. Trata-se, nesse primeiro
caso, de uma operação de "separação contra alienação", ou seja, a
anoréxica buscaria desvincular-se da operação subjetiva estrutural da
alienação ao campo da linguagem, ao campo do Outro, através de uma
"pseudo-separação" (RECALCATI, 2001, p.28, 29; e também: SILVA &
BASTOS, 2006, p.105).
O
segundo "nada", associado por Recalcati ao princípio de nirvana
freudiano, à pulsão de morte, seria mais uma anulação do desejo, uma
"redução do desejo a nada", e estaria então ligado às "formas graves de
anorexia", "estruturalmente psicóticas" (RECALCATI, 2001, p.26-36).
Nesse
ponto, caberia introduzir algumas perguntas relativas, de início, às
próprias formulações de Lacan sobre a anorexia. As proposições
lacanianas mencionadas referem-se à anorexia da criança em sua relação
com a demanda materna. Haveria uma continuidade lógica entre a anorexia
infantil e a anorexia que aparece na puberdade, especialmente em
meninas? Seria a anorexia da puberdade uma reatualização da anorexia
infantil? A experiência clínica parece contradizer de certo modo essa
hipótese, no sentido em que, em grande parte dos casos nos quais o
sintoma aparece na puberdade, observamos que não há a contrapartida de
um período significativo de anorexia infantil na história do sujeito.
Por
outro lado, quanto às contribuições de Recalcati, poderíamos avançar as
seguintes interrogações: em primeiro lugar, não será uma
"pseudo-separação" o que se opera no sintoma neurótico como tal, e não
apenas no sintoma anoréxico? Parece-nos que é exatamente sobre essa
"pseudo-separação" promovida pelo neurótico que irá incidir a
intervenção analítica. Em segundo, o que diferencia "a nirvanização do
sujeito", correlativa ao segundo "nada" referido pelo autor - "pura
expressão da pulsão de morte" (RECALCATI, 2001, p.34) -, do negativismo
do sujeito melancólico?
A
expressão "meninas jovens" que encontramos tanto nas descrições
psiquiátricas clássicas da anorexia quanto na obra freudiana nos
encaminha para um exame do sintoma anoréxico em sua articulação com a
questão da feminilidade.
Nossa
proposta, neste trabalho, é abordar a anorexia mental como uma resposta
particular de alguns sujeitos aos problemas colocados pelo desejo e
pelo gozo femininos. Partimos da experiência clínica em que se verifica a
incidência do sintoma em mulheres, sobretudo na fase da puberdade.
Pretendemos também avançar uma discussão a respeito da contemporaneidade
do sintoma anoréxico, e sobre as particularidades da direção do
tratamento. (...)"
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