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26 de setembro de 2011

Dica de leitura: Anorexia mental e feminilidade

Anorexia mental e feminilidade é um texto de Simone Pencak e Angélica Bastos que eu recomendo para os que se interessam pelo tema. Como definido no seu resumo: "Pretende-se discutir a anorexia e sua incidência preponderante em jovens mulheres, extraindo da teorização da experiência indicações para a direção do tratamento psicanalítico. Discute-se a anorexia como sintoma contemporâneo e examina-se a hipótese de uma estratégia de paridade entre os sexos. A resposta anoréxica é articulada à problemática da sexuação no ensino de Jacques Lacan, sendo tal resposta circunscrita ao impasse relativo à inexistência do universal das mulheres."
O artigo foi publicado na Revista Ágora (vol. 12, nº2, Rio de Janeiro, 2009) e é uma grande dica de leitura!


Introdução
"A anorexia mental constitui um sintoma que interroga o psicanalista em sua prática, para além de qualquer afirmação de que estejamos assistindo na atualidade a um aumento no número de pacientes anoréxicas, tanto nos consultórios quanto nas instituições de atenção à saúde.
As descrições clínicas da anorexia remontam a 1689, apesar de os termos 'anorexia nervosa' ou 'anorexia histérica' só terem aparecido na literatura especializada por volta do ano de 1870, com os trabalhos de William Gull e Charles Lasègue (BIDAUD, 1998, p.15-16). Cabe apontar que as descrições deste último são bastante precisas, não só do ponto de vista dos fenômenos, mas também quanto à apreensão de uma dinâmica psíquica particular em jogo na condição desses doentes. Daí, Lasègue referir-se a um "otimismo inexpugnável", a um "consentimento patológico" e ao surpreendente fato de que a paciente "não suspira pela cura, mas se compraz na sua condição, apesar de todas as restrições que esta lhe suscita" (LASÈGUE apud BIDAUD, 1998, p.17).
Mais recentemente, observa-se que à descrição psiquiátrica clássica do quadro patológico - incluindo em geral a recusa alimentar derivada de fatores mentais ou "nervosos", emagrecimento importante e amenorreia -, acrescentou-se o dado fenomênico de um transtorno da imagem corporal, sendo este último promovido ao estatuto de fator patognomônico, quando não etiológico, da doença. A partir daí, tem se tentado inferir que a anorexia mental seria um sintoma contemporâneo vinculado ao ideal de corpo magro vigente na sociedade atual. Veremos mais adiante os limites e contradições dessa concepção. 


Quanto ao campo psicanalítico, notamos que as indicações freudianas são raras e esparsas. Encontra-se o sintoma anoréxico das jovens meninas ora como "uma forma de melancolia nos sujeitos de sexualidade não inteiramente desenvolvida" (FREUD, 1895/1986, p.240) - sendo a perda de apetite relacionada à perda de libido -, ora como neurose que ocorre "nas meninas na época da puberdade ou pouco depois, e que exprime a aversão à sexualidade por meio da anorexia", devendo "ser vinculada com a fase oral da vida sexual" (FREUD, 1918 [1914]/1986, p.97). Perda de libido de um lado, aversão à sexualidade do outro, a perspectiva freudiana oscila entre uma aproximação da anorexia com a melancolia e sua inclusão no campo da histeria.
Não deve passar despercebido que o sintoma anoréxico, tanto nas descrições da psiquiatria clássica quanto na obra freudiana, aparece como um sintoma feminino por excelência, um sintoma que atinge particularmente mulheres, e em especial mulheres jovens, fato comprovado por diversas pesquisas médicas. Cabe nesse momento a pergunta que nos parece fundamental: qual será a razão dessa esmagadora incidência em mulheres jovens?
As contribuições lacanianas ao tema dizem respeito à dialética da demanda e do desejo. Seguindo esta orientação, adotamos a designação 'anorexia mental', que põe em relevo a dimensão da recusa ao objeto da necessidade e ao Outro da demanda. Se "é a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo (anorexia mental)" (LACAN, 1958/1998, p.634), é porque a recusa do alimento visa fazer surgir o que está para além da demanda alimentar, ou seja, o desejo do Outro. E também, como escreve Lacan em forma de pergunta, "a criança, ao se recusar a satisfazer a demanda da mãe, não exige que a mãe tenha um desejo fora dela, porquanto essa é a via que lhe falta rumo ao desejo"? (LACAN, 1958/1998, p.634)
Além disso, verifica-se um empenho no ensino lacaniano em vincular a anorexia mental a um "comer nada", diferenciado radicalmente de "uma negação da atividade", de um "não comer". "Graças a este nada, ela (a criança) faz a mãe depender dela" (LACAN, 1956-1957/1995, p.189), em uma manobra que inverte a relação inicial de dependência do sujeito em relação ao Outro materno, a recusa alimentar coloca em jogo o "nada" como objeto separador.
Recalcati propõe situar "uma clínica diferencial da anorexia" por meio da distinção de dois estatutos do "nada" e, assim, "esboçar uma clínica diferencial do nada". Um primeiro comer "nada" estaria ligado à histeria, portanto à neurose, em que a recusa alimentar vale como suporte e escudo do desejo, em oposição à demanda sufocante do Outro, visando fazer surgir o signo do amor no Outro. Trata-se, nesse primeiro caso, de uma operação de "separação contra alienação", ou seja, a anoréxica buscaria desvincular-se da operação subjetiva estrutural da alienação ao campo da linguagem, ao campo do Outro, através de uma "pseudo-separação" (RECALCATI, 2001, p.28, 29; e também: SILVA & BASTOS, 2006, p.105).
O segundo "nada", associado por Recalcati ao princípio de nirvana freudiano, à pulsão de morte, seria mais uma anulação do desejo, uma "redução do desejo a nada", e estaria então ligado às "formas graves de anorexia", "estruturalmente psicóticas" (RECALCATI, 2001, p.26-36).
Nesse ponto, caberia introduzir algumas perguntas relativas, de início, às próprias formulações de Lacan sobre a anorexia. As proposições lacanianas mencionadas referem-se à anorexia da criança em sua relação com a demanda materna. Haveria uma continuidade lógica entre a anorexia infantil e a anorexia que aparece na puberdade, especialmente em meninas? Seria a anorexia da puberdade uma reatualização da anorexia infantil? A experiência clínica parece contradizer de certo modo essa hipótese, no sentido em que, em grande parte dos casos nos quais o sintoma aparece na puberdade, observamos que não há a contrapartida de um período significativo de anorexia infantil na história do sujeito.
Por outro lado, quanto às contribuições de Recalcati, poderíamos avançar as seguintes interrogações: em primeiro lugar, não será uma "pseudo-separação" o que se opera no sintoma neurótico como tal, e não apenas no sintoma anoréxico? Parece-nos que é exatamente sobre essa "pseudo-separação" promovida pelo neurótico que irá incidir a intervenção analítica. Em segundo, o que diferencia "a nirvanização do sujeito", correlativa ao segundo "nada" referido pelo autor - "pura expressão da pulsão de morte" (RECALCATI, 2001, p.34) -, do negativismo do sujeito melancólico?
A expressão "meninas jovens" que encontramos tanto nas descrições psiquiátricas clássicas da anorexia quanto na obra freudiana nos encaminha para um exame do sintoma anoréxico em sua articulação com a questão da feminilidade.
Nossa proposta, neste trabalho, é abordar a anorexia mental como uma resposta particular de alguns sujeitos aos problemas colocados pelo desejo e pelo gozo femininos. Partimos da experiência clínica em que se verifica a incidência do sintoma em mulheres, sobretudo na fase da puberdade. Pretendemos também avançar uma discussão a respeito da contemporaneidade do sintoma anoréxico, e sobre as particularidades da direção do tratamento. (...)"


Confira o artigo na íntegra aqui!