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22 de março de 2011

"Porque a guerra?"

Em 1932, poucos anos antes do início da Segunda Guerra Mundial, dois dos maiores pensadores do século XX trocaram breve correspondência interrogando a necessidade da guerra, os motivos que levam o povo a criá-la e a violência intrínseca da espécie humana.

É nesse cenário pré guerra que o gênio da física, interroga o gênio das ciências mentais, questionando: "Porque a guerra?"

As cartas fazem parte das Obras Completas de Freud e nos chama atenção pelo fato de que, mesmo tendo sido escrita a 79 anos atrás, tanto os questionamentos quanto as hipóteses levantadas, são atuais e pertinentes ao nosso tempo, marcado pela violência, guerras religiosas e atentados terroristas

Leia abaixo a correspondência entre Einstein e Freud na íntegra!
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Caputh junto a Potsdam, 30 de julho de 1932

Prezado Professor Freud,

A proposta da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, de minha própria escolha, para um franco intercâmbio de pontos de vista sobre algum problema que eu poderia selecionar, oferece-me excelente oportunidade de conferenciar com o senhor a respeito de uma questão que, da maneira como as coisas estão, parece ser o mais urgente de todos os problemas que a civilização tem de enfrentar. Este é o problema: Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significação de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.
Ademais, acredito que aqueles cuja atribuição é atacar o problema de forma profissional e prática, estão apenas adquirindo crescente consciência de sua impotência para abordá-lo, e agora possuem um vivo desejo de conhecer os pontos de vistas de homens que, absorvidos na busca da ciência, podem mirar os problemas do mundo na perspectiva que a distância permite. Quanto a mim, o objetivo habitual de meu pensamento não me permite uma compreensão interna das obscuras regiões da vontade e do sentimento humano. Assim, na indagação ora proposta, posso fazer pouco mais do que procurar esclarecer a questão em referência e, preparando o terreno das soluções mais óbvias, possibilitar que o senhor proporcione a elucidação do problema mediante o auxílio do seu profundo conhecimento da vida instintiva do homem. Existem determinados obstáculos psicológicos cuja existência um leigo em ciências mentais pode obscuramente entrever, cujas inter-relações e filigranas ele, contudo, é incompetente para compreender; estou convencido de que o senhor será capaz de sugerir métodos educacionais situados mais ou menos fora dos objetivos da política, os quais eliminarão esses obstáculos.
Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abordar o aspecto superficial (isto é, administrativo) do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos. Já de início, todavia, defronto-me com uma dificuldade; um tribunal é uma instituição humana que, em relação ao poder de que dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais. Este é um fato com que temos de contar; a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões jurídicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em cujo nome e em cujos interesses esses veredictos são pronunciados), na medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito ao seu ideal jurídico. Atualmente, porém, estamos longe de possuir qualquer organização supranacional competente para emitir julgamentos de autoridade incontestável e garantir absoluto acatamento à execução de seus veredictos. Assim, sou levado ao meu primeiro princípio; a busca da segurança internacional envolve a renúncia incondicional, por todas as nações, em determinada medida, à sua liberdade de ação, ou seja, à sua soberania, e é absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurança.
O insucesso, malgrado sua evidente sinceridade, de todos os esforços, durante a última década, no sentido de alcançar essa meta, não deixa lugar à dúvida de que estão em jogo fatores psicológicos de peso que paralisam tais esforços. Alguns desses fatores são mais fáceis de detectar. O intenso desejo de poder, que caracteriza a classe governante em cada nação, é hostil a qualquer limitação de sua soberania nacional. Essa fome de poder político está acostumada a medrar nas atividades, de um outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário. Refiro-me especialmente a esse grupo reduzido, porém decidido, existente em cada nação, composto de indivíduos que, indiferentes às condições e aos controles sociais, consideram a guerra, a fabricação e venda de armas simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade pessoal.
O reconhecimento desse fato, no entanto, é simplesmente o primeiro passo para uma avaliação da situação atual. Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? (Ao falar em maioria, não excluo os soldados, de todas asgraduações, que escolheram a guerra como profissão, na crença de que estejam servindo à defesa dos mais altos interesses de sua raça e de que o ataque seja, muitas vezes, o melhor meio de defesa.) Parece que uma resposta óbvia a essa pergunta seria que a minoria, a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente, também a Igreja, sob seu poderio. Isto possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento da mesma minoria.



Ainda assim, nem sequer essa resposta proporciona uma solução completa. Daí surge uma nova questão: como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.
Com isso, chegamos à nossa última questão. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? Aqui não me estou referindo tão-somente às chamadas massas incultas. A experiência prova que é, antes, a chamada ‘Intelligentzia’ a mais inclinada a ceder a essas desastrosas sugestões coletivas, de vez que o intelectual não tem contato direto com o lado rude da vida, mas a encontra em sua forma sintética mais fácil — na página impressa.
Para concluir: Até aqui somente falei das guerras entre nações, aquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circunstâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.) Foi deliberada a minha insistência naquilo que é a mais típica, mais cruel e extravagante forma de conflito entre homem e homem, pois aqui temos a melhor ocasião de descobrir maneiras e meios de tornar impossíveis qualquer conflito armado.
Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois umatal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação.

Muito cordialmente,
A. EINSTEIN.
Viena, setembro de 1932.

Carta de Einstein
Em Obras Completas de Freud, Volume XXII


Para ver a resposta de Freud, enviada à Einstein clique aqui.

21 de março de 2011

Crianças sem limites

Artigo do blog Mulher 7x7 escrito pela jornalista Cristiane Segatto

Coleira para criança, berço para cachorro

"Na última semana, tão fortemente marcada pela dor dos japoneses e pelas tentativas de evitar um desastre nuclear, uma notícia menor, à primeira vista sem maiores consequências, também mexeu comigo. Em reportagem publicada na Folha de S. Paulo, Mariana Versolato descreve a mais nova onda entre as mães de crianças pequenas: colocar os filhos na coleira

A guia para conter crianças é mais uma invenção neurótica importada dos Estados Unidos. Ela começa a ganhar adeptas nas ruas, nos shoppings centers, nos aeroportos brasileiros. O argumento para usá-la, tipicamente americano, é a garantia de conforto e segurança. A coleira não é colocada no pescoço. É um objeto de repressão travestido de acessório fofinho e infantil. A criança coloca uma mochilinha nas costas (alguns modelos vêm com um bichinho de pelúcia acoplado). Da mochila sai uma cordinha que a mãe segura para evitar que a criança se afaste demais. Como os cachorros espoletas, as crianças amarradas à coleira arrastam as mães.

Ainda não vi essa cena, mas posso imaginar o quanto de bizarrice há nela. Um garoto correndo pelo shopping obriga a mãe a dar pinotes enquanto ela grita, em vão: “Pare. Não corra. Aqui não. Eu disse para parar”. Se a mãe não consegue controlar o filho sem coleira porque ele deveria obedecê-la justamente na hora em que a situação parece perseguição de desenho animado? Imagino que a criança só poderia dizer: “De novo. Mais rápido. Outra vez”. E a cara da mãe quando o shopping inteiro comentar o vexame? Como dizem as meninas de 20 anos, isso “é muito vergonha alheia”. Mico total.



A vergonha é o que menos interessa nessa história. O que está implícito na decisão de comprar uma coleira? Os pais querem ter comodidade para olhar outras coisas sem se preocupar se os filhos estão por perto? É recurso para quem não consegue estabelecer limites? “A coleira é um instrumento ideal para quem não sabe dizer o que pode e o que não pode”, diz a psicoterapeuta Maria Teresa Lago. Se tivessem construído a autoridade que precisam ter, bastaria que os pais dissessem ‘não corra’, ‘fique quieto’, ‘aqui não é lugar para isso’. Essa autoridade é desafiada pelas crianças o tempo todo, mas é o tipo de embate do qual não se pode abrir mão. Dele depende a formação de um cidadão que aprende o que é aceitável e o que não é.

Segurar na mão da criança não seria mais simples, barato e natural? “Não pegamos os filhos pela mão só por pegar”, diz Maria Teresa. “Fazer isso é uma tentativa de tê-los conosco no sentido afetuoso da coisa.” A segurança que a mão do pai ou da mãe nos dá é um patrimônio emocional que não deve ser desprezado. Quem teve pai e mãe desempenhando seu verdadeiro papel provavelmente vai se lembrar, décadas depois, da mão que conduzia à sorveteria numa tarde de domingo ou que ajudava a atravessar a rua movimentada num dia cinza.

Enquanto o contato entre pais e filhos é substituído pela coleira, os cachorros ocupam o espaço que até há pouco tempo era exclusivo das crianças. A tentativa de humanizar os animais é estimulada pelo lançamento de produtos que - se não fossem tão pequenos -- poderiam ser vendidos em lojas de produtos para bebês. Há berço e carrinho de passeio para o pet que ganha nome de criança. A dona o chama, sem o menor constrangimento, de filhinho. “O cachorro é um prato feito para quem precisa ter uma garantia na relação.”, afirma Maria Teresa. “A garantia de afeto é total: quando o dono chega em casa o cachorro sempre vai pular no colo.”

Não vejo nenhum problema no amor destinado aos animais. Mas quem gosta deles deve amá-los pelo que são. Cachorro tem que ser amado como cachorro. Gato como gato. E não como o filho que não existiu ou que se foi. Ao tentar humanizar os bichos, os donos produzem aberrações. Sinto pena do cão quando o vejo vestido com roupinhas, enfeites de cabeça e outras peruices que o transformam numa cópia desajeitada da dona. Fico mais aflita ainda quando percebo que sofreram intervenções radicais ao bel-prazer dos donos.

Como se não bastasse cortar as unhas e arrancar as sobrancelhas dos bichos, chegam ao cúmulo de castigá-los pelos latidos. Vi na internet uma coleira antilatido que me deixou assustada. Ela funciona por meio do condicionamento pavloviano clássico. Quando o cachorro late, a coleira emite um sinal sonoro. Se ele latir outra vez nos trinta segundos seguintes, o aparelho apita e o coitado recebe um choque suave. A cada latido adicional, o choque se intensifica até ficar cinco vezes mais forte que o primeiro.

O cão é condicionado a ficar calado, aprende a não exibir nenhum sinal revelador de sua natureza. Os bem comportados ganham comida e afagos. E, dependendo do gosto e do exibicionismo da dona, ganha também uma coleira Louis Vuitton. “Vi num shopping do Leblon um cachorro que exalava perfume e tinha o pelo mais brilhante que o cabelo da dona. Ficava solto, deitado ao lado dela como se fosse uma criança”, diz Maria Teresa. “A humanização dos bichos é patológica, mas parece que ninguém reflete sobre isso.”

O mundo me espanta, me surpreende. Tenho mania de observar e refletir sobre pequenos sinais que parecem não dizer nada, mas que podem significar muito. Inversões de papéis me intrigam. Assim como invenções estranhas que prometem comodidade e vão se imiscuindo na nossa vida até parecer absolutante normais. Alguma coisa está fora do lugar quando colocamos a criança na coleira e o cachorro no berço."