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8 de abril de 2010

Texto

A outra volta do parafuso

Acossar os pais dos usuários de drogas não tira a juventude dessa terra de ninguém


Os tiros disparados por Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, à queima-roupa e sem nenhuma tergiversação, colocaram em cena de maneira brutal o destino funesto do uso de drogas pela juventude na sociedade brasileira contemporânea. Pelas declarações das testemunhas, Carlos Eduardo, o Cadu, réu confesso, estava evidentemente drogado no momento do crime. O pai do jovem logo sustentou a versão de que Cadu era esquizofrênico. Não só. Sua suposta psicose também teria sido produzida pela frequentação à Céu de Maria, comunidade religiosa do santo-daime. O pai insistira em internar o filho num hospital psiquiátrico, mas o jovem a isso resistiu, alegando não querer terminar como a mãe esquizofrênica. Enfim, a articulação entre uso de droga e crime se desdobrou aqui numa outra, qual seja, a ligação entre loucura e crime.
É possível que o pai tenha criado essa versão, no calor da hora, para colocar o filho na condição de irresponsabilidade jurídica. Seria preferível ser louco do que drogado aos olhos da opinião pública, de maneira a retirar o peso do ato fatal do jovem. Além disso, procurou imputar diretamente os rituais religiosos do santo-daime, regado à droga alucinógena, para relativizar a brutalidade do crime praticado e deslocar para as vítimas toda a responsabilidade pela tragédia. Glauco passaria da condição de vítima para a de algoz, devido à liderança que exercia na comunidade do santo-daime.
É bastante provável que o discurso paterno em questão tenha sido minuciosamente montado pelo advogado para delinear a defesa a ser sustentada no processo criminal. Em contrapartida, a declaração do delegado Marcos Carneiro, do Departamento de Polícia Judiciária da Macro São Paulo, é uma ducha de água fria nessa versão. Para o delegado, o comportamento do estudante seria típico de um criminoso comum não apenas pela premeditação do assassinato, mas também pelos meios materiais que colocou em ação para a aquisição da arma do crime. No que tange a isso, apenas o futuro dirá qual será o desfecho desse imbróglio e qual versão prevalecerá sobre o acontecimento trágico.
É preciso destacar logo de início que nem sempre o uso de drogas conduz o sujeito ao crime. Pode levá-lo a outra infrações para conseguir a droga de que tanto precisa, mas não necessariamente a um assassinato. É necessário evocar aqui essa banalidade na medida em que, no imaginário social, a articulação entre uso de droga e crime está tecida por conta mesmo da criminalização do uso no Brasil e em escala internacional. Com efeito, ele se inscreve primariamente nos registros policial e judiciário, e não no campo da saúde, como deveria.
A história de Carlos Eduardo é conturbada. Do percurso escolar errático à inconsistência das referências familiares, sua trajetória existencial é típica de uma parcela da juventude que busca nas drogas o alento possível para a angústia cinzenta da existência. Podemos ler essa modalidade de narrativa para descrever a constituição da figura social e psíquica do drogado, como se a inconsistência social do quadro familiar e a fragilidade psíquica das figuras parentais fossem a condição concreta para que o futuro drogado se constituísse como personagem. A mídia dissemina frequentemente tal versão nas suas páginas policiais, forjada que é pela polícia e pelo Poder Judiciário, em colaboração íntima com especialistas, sejam estes oriundos dos campos da psiquiatria, da psicologia ou da psicanálise.
Se o caso em pauta ocorre no campo social da classe média alta, o mesmo modelo de leitura se faz ainda mais eloquente no campo das classes populares. A inconsistência da família e a fragilidade psíquica das figuras parentais se conjugam com a total precariedade das condições sociais, das quais resultaria não apenas o uso de drogas como um percurso criminoso, cujos destinos se entrelaçariam intimamente. Nessa perspectiva, coloca-se sempre em destaque a figura do pai ausente e a do pai inexistente para justificar a intervenção repressiva do Estado, que procuraria substituir essa ausência/inexistência. A complexa situação das supostas classes perigosas da população seria reduzida a uma questão policial, por um lado, e familiar, pelo outro, enquanto uma leitura psicologizante da lei faria essa mediação.
No entanto, em outra parcela da população, as coisas não se passam exatamente assim. Encontramos muitos jovens provenientes de famílias relativamente bem constituídas que se voltam para o consumo de drogas por diferentes razões. O filme Meu Nome não É Johnny, do cineasta Mauro Lima, mostra a história verídica de um jovem, ao mesmo tempo drogado e traficante, que não tinha bem esse perfil. O que está em questão é algo muito mais complexo, algo que não pode ser simplificado por fórmulas criadas pela polícia e pelo poder judiciário, em colaboração ostensiva com setores do campo psi. É preciso que se diga, em alto e bom som, que não existe nem o sujeito infrator, difundido nos últimos anos por certos discursos psicanalíticos, nem tampouco o sujeito drogado, que se constrói por coordenadas similares.
Não resta dúvida de que o uso de drogas se dissemina na juventude brasileira. Para lidar com isso, contudo, é preciso considerar suas condições sociais e simbólicas. Diferentemente dos anos 60, ela hoje entra mais tarde no mercado de trabalho. Tal qual a população que tem entre 50 e 60 anos, é a faixa etária mais atingida pela voragem da economia neoliberal. Estende sua condição juvenil, porém o não reconhecimento simbólico a empurra para a violência e mesmo delinquência, temperadas ou não com o uso ostensivo de drogas. Se essa problemática social sempre marcou as classes populares no Brasil, na atualidade ela se inscreve também na classe média e na das elites, forjando para essas outros destinos trágicos.
É para essa problemática maior que temos que nos voltar com urgência, para que possamos construir outros rumos para a juventude, hoje inscrita nas bordas da terra de ninguém. Ao lado disso, é preciso suspender a culpabilização das figuras parentais, para que possam buscar ajuda para seus filhos drogados sem se sentirem envergonhados e humilhados por conta disso. A ser mantida a conjunção entre a culpabilização e a criminalização dos usuários de droga, ao lado da acusação de suas famílias, vamos continuar acossados face a isso e caminharemos decididamente para a catástrofe. É preciso dar outra volta no parafuso, parafraseando o célebre título do romance de Henry James.

JOEL BIRMAN
PSICANALISTA, PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UFRJ E PROFESSOR ADJUNTO DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ

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