.
.

3 de dezembro de 2009

Consumo, logo existo

Artigo da Mente&Cérebro:

Comprar exageradamente pode ser uma forma patológica de aplacar angústias; muitas vezes, a compulsão é “sazonal”: festas de fim de ano e férias convidam ao consumo excessivo

Diante de um mercado forte e diversificado, o homem da sociedade contemporânea é continuamente bombardeado por sedutoras peças publicitárias, que prometem bem-estar, status, conforto, projeção imediata e ilusão de segurança. Com a chegada das festas de fim de ano, a lógica do “consumo, logo existo”, segundo a qual o bem-estar é conquistado pela aquisição de produtos, se torna ainda mais evidente. Em casos extremos, a compulsão por compras pode se tornar patológica.

Dois psiquiatras, o alemão Emil Kraepelin (1856-1926) e o suíço Eugen Bleuer (1857-1939), foram os primeiros a escrever sobre o comprar compulsivo (ou oniomania), no início do século XX.Para os pesquisadores, levar em conta a dificuldade de controlar o impulso é elemento essencial para compreender o quadro. Eles observaram que algumas mulheres com esse diagnóstico buscavam excitação, assim como os jogadores patológicos. O tema caiu no esquecimento nos anos seguintes e foi retomado de forma mais intensa na década de 90. O transtorno, porém,ainda não é considerado uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS).



Segundo a psicóloga Tatiana Filomensky, do Ambulatório dos Transtornos do Impulso do Hospital das Clínicas, a pessoa que sofre de compulsão experimenta uma forte ansiedade que só é aliviada quando faz a compra. “Ela não consegue controlar um desejo intrusivo e repetitivo. O ato é imediatamente seguido por intenso sentimento de alívio.” Em situações de impossibilidade

de comprar podem aparecer sintomas como irritação, sudorese, taquicardia, tremor e sensação de desmaio iminente. Algum tempo depois de adquirir a nova mercadoria, porém, surge a sensação de remorso e decepção diante da incapacidade de controlar o impulso. Numa atitude compensatória, o mal-estar causado pela culpa leva a pessoa a comprar novamente, dando continuidade ao círculo vicioso.

Numa sociedade que estimula o máximo consumo e a satisfação do prazer imediato, a compulsão por compras não é notada tão prontamente pela família, diferente do que ocorre com de outras dependências, como o abuso de drogas. Por isso, quem sofre do transtorno leva muitos anos para reconhecer o caráter patológico do seu comportamento. Mas quando isso acontece, a pessoa sente vergonha por não vencer a batalha contra o impulso – e, assim, o transtorno pode ser mantido em segredo por anos a fio.

Segundo a psicóloga Juliana Bizeto, coordenadora do Ambulatório de Dependências Não Químicas, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a avaliação do problema não é feita com base na quantidade de dinheiro gasto. Isso, por si só, não constitui evidência para diagnóstico, mas sim prejuízo que o comportamento pode causar na vida da pessoa, já que ela passa a negligenciar atividades sociais importantes como trabalho e família. “O que deve ser considerado é a relação do paciente com a compra. Para o compulsivo, o único prazer está no ato de adquirir, ele não pretende usufruir do objeto: é um comportamento vazio”, afirma. Há, portanto, uma restrição do prazer, um empobrecimento social e uma queda da qualidade de vida, já que a pessoa se torna apática diante de outros estímulos.”

Em sua tese de doutorado, Juliana Bizeto investiga os fatores de risco que estão envolvidos com o surgimento de dependências não químicas. Com base em dados de uma pesquisa realizada com pacientes compulsivos atendidos pelo Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), da Unifesp, ela constatou que um aspecto de grande importância é a falta de inserção social. “A pessoa que não está inserida em um grupo social, seja no trabalho, na família ou na igreja tem maior possibilidade de desenvolver algum tipo de dependência, seja por compras, jogos, sexo ou internet”, observa.

O artigo “Compulsive Buying. Demography, Phenomenology and comorbidity in 46 subjetcs”, publicado pelo periódico Gen Hosp Psychiatry em 1994, mostra que 94% dos compradores compulsivos são mulheres. Juliana ressalta, porém, que a presença do transtorno na população masculina pode estar subestimado. “Não sabemos se as mulheres são realmente as maiores vítimas ou se são as que mais frequentemente procuram o serviço de saúde. Em alguns casos, a gravidade do quadro é ainda mais acentuada nos homens porque eles demoram a buscar tratamento e, quando isso acontece, chegam ao ambulatório muito comprometidos”, ressalta.

Veja o artigo na íntegra aqui.

2 de dezembro de 2009

Elas não são gays!

Vi no blog Significantes e me chamou atenção por tem muito do que foi discutido, em algum momento, no grupo de estudo que participo as quartas à noite.

Michele e Carla são casadas, têm filhos, mas afirmam não ser homossexuais


Quando conhecem alguém, Michele Kamers e Carla Cumiotto fazem questão de se apresentar sem deixar nada por dizer: “Somos casadas, fizemos inseminação artificial em São Paulo e temos dois filhos”. Elas preocupam-se em deixar tudo claro por acreditar que são as dúvidas e sombras que alimentam maledicências e preconceitos. E, como formaram uma família diferente do padrão convencional, querem que seu casal de filhos cresça numa sociedade preparada para recebê-los. Conheci essas mulheres extraordinárias dias atrás, quando as procurei com a proposta de contar sua história. O resultado desse encontro é a reportagem "A primeira nova família brasileira", publicada na atual edição de ÉPOCA.

Michele e Carla conquistaram na Justiça o direito de registrar seus gêmeos, de 2 anos, no nome de ambas. Até agora só tinham o sobrenome de Carla, a mãe biológica. Michele não aceitava a ideia de ter de entrar com um pedido de adoção. Ela desejou esses filhos, acompanhou o processo de inseminação, via banco de esperma, esteve ao lado de Carla durante toda a gestação e no parto por cesariana, e cria junto com Carla os dois filhos na casa que ambas compraram. “Eu não poderia adotar meus próprios filhos”, diz. “Eles nasceram do meu desejo, tanto quanto do de Carla.”

É a primeira vez que a Justiça brasileira reconhece um vínculo exclusivamente afetivo, simbólico, como parental. Não há nenhum traço biológico ligando os gêmeos a Michele. Mas ninguém que conhece a família, assim como o juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga, da 8ª Vara de Família de Porto Alegre, tem qualquer dúvida sobre o fato de eles serem tão filhos de Michele quanto são de Carla. A surpresa é que uma das maiores vitórias na área dos direitos dos LGBTTTS é de um casal de mulheres que afirma não ser homossexual – não por preconceito, mas porque acreditam que a questão é mais complexa do que parece. A sigla, cada vez maior porque há sempre uma nova diferenciação a incluir, significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Trangêneros e Simpatizantes.

Quando Carla e Michele disseram-me que não se identificavam como homossexuais, meu primeiro sentimento foi de estranhamento. Até então eu me considerava heterossexual – uma definição que identifica pessoas que costumam viver suas histórias de amor com o sexo oposto, mas que raramente é usada porque ninguém precisa ficar afirmando algo que é o convencional – e, principalmente, que é aceito. E homossexual era todo aquele que vivia relações afetivas e sexuais com o mesmo sexo. Simples assim.

Pelos amigos gays e por algumas reportagens que gostaria de ter feito, sempre soube que os arranjos eram muito mais complexos e interessantes do que isso. E que, ao reduzir a diferença a uma palavra ou mais palavras fechadas em seu significado, perde-se de vista um universo pleno de nuances. E nós, ditos heterossexuais, também somos reduzidos a algo que parece muito óbvio – e que de fato não é, ou pelo menos espera-se que não seja. Mas nunca fui provocada a pensar tanto assim no assunto.

Ao entrevistar o casal em sua casa, em Blumenau (SC), seus argumentos me levaram a uma série de novas questões. Ao final do primeiro dia, eu e o fotógrafo Marcelo Min pedimos uma garrafa de vinho, no hotel, e ficamos conversando sobre as tantas perguntas inusitadas que a reportagem nos provocava. Esse é sempre o melhor cenário para um repórter e para um fotógrafo que amam o que fazem: quando a pauta se mostra muito mais complexa do que parecia e nos desafia, também do ponto de vista pessoal, a indagações inéditas. Acredito que uma reportagem só acontece quando repórteres e personagens se transformam nesse encontro. E espero ter colocado nelas quase tantas pulgas quanto elas me colocaram.

Carla e Michele são psicanalistas, professoras universitárias, que pensam bem e têm um ótimo senso de humor. Formam um casal mais tradicional do que a maioria dos casais convencionais que eu conheço. Cada uma delas tem uma papel bem definido na relação: Michele ocupa a posição masculina e Carla a feminina – entendendo tanto o feminino quanto o masculino nas definições tradicionais inscritas na cultura. Carla sempre namorou homens – masculinos – e Michele é a primeira mulher de sua vida. “Não posso me identificar como homossexual porque sou atraída pela posição oposta”, diz Carla. “Gosto de homens e mulheres masculinos. Jamais beijaria uma mulher ou um homem feminino.” Na rua, Carla segue olhando para homens e, em geral, observa uma mulher quando se interessa por seus sapatos, bolsas ou roupas.

Michele namorou gente de ambos os sexos durante a adolescência, mas acabou fixando-se em mulheres femininas na vida adulta. Quando viu Carla, sua professora no curso de Psicologia, encantou-se pelo vestido justo, de um ombro só, e pelas unhas vermelhas. Ela mesma está bem longe do que seria o esterótipo de uma mulher masculina. Michele é bonita, veste-se com estilo, inclusive usando vestidos justos nas festas, usa brincos, colares e maquiagem, tem luzes no cabelo pelos ombros. Mas, por um sentimento intangível, qualquer um que se aproxima dela sabe que ela é masculina, mas não no sentido de se parecer a um homem, mas masculina como só uma mulher pode ser.

E, para ciúmes de Carla, que descobriu-se com a novidade de um marido circulando predominantemente entre mulheres, Michele mesmo sem querer desperta paixonites entre garotas homo ou heterossexuais. Mas também não consegue ver-se como homossexual. “Hoje existem diversos modos de ser mulher, inclusive ser mulher e ter uma posição masculina. Do mesmo modo que é possível ser um homem na posição feminina. Não é preciso cortar o pênis para ter um lugar social. Muita gente, ao mudar de sexo, está resolvendo na anatomia uma questão psíquica, uma questão de reconhecer-se no corpo que se tem”, diz. “Acho que uma mulher precisa ser muito mulher no sentido de não ter medo de ser confundida com um homem. Me vejo como uma mulher masculina que gosta de mulheres femininas.”

Michele Kamers e Carla Cumiotto

Carla e Michele não frequentam guetos gays, como bares, restaurantes e danceterias. A maioria de seus amigos poderia ser identificada como heterossexual. “Todo o gueto – e não apenas o homossexual – visa excluir a diferença. Seja ele ideológico, religioso, racial ou sexual”, diz Michele. “E nós acreditamos que é o confronto com as diferenças que nos faz avançar, que nos apresenta novas possibilidades de existir, que nos permite a invenção de uma vida melhor. Nas ocasiões em que tentaram eliminar as diferenças, determinar que só existia uma forma de viver, foi muito triste, como no nazismo e no fascismo.”

Como a questão de ser ou não homossexual tangenciou as cinco horas de entrevista, Carla e Michele ainda me enviaram um email, com o objetivo de clarear sua posição. É Carla que escreve primeiro: “Não nos reconhecemos como homossexual justamente por que, ao se apresentar como ‘homossexual’ nos parece que o sujeito reduz e condensa o conjunto de traços identificatórios que o define a apenas um: ‘o homossexual’. Ou seja, como se a partir desse momento deixasse de ter nome próprio, de ser filho, de ter uma profissão, de ter uma identidade de homem ou mulher. Somos mulheres e entendemos que, na vida, se é homem ou mulher. Para depois, a partir das determinações discursivas da época em que se vive, assim como a partir das marcas infantis, e assim como dos ‘bons encontros’ na vida, cada um vai se referenciando a partir do masculino ou do feminino enquanto posição psíquica. E isso vai determinar seu jeito de amar, de namorar, de fazer laço, etc. Por exemplo: No primeiro dia em que ficamos, quando fui tocar o corpo da Michele, me surpreendi que não tinha um pênis. Isso é só para te inspirar e te dar um exemplo de que o quanto o conhecimento da anatomia e da realidade é menos determinante que a dimensão do simbólico enquanto representação. Isso é para brincar um pouco do quanto existem mil e um ordenadores e arranjos possíveis no campo da sexualidade e, principalmente, uma infinidade de arranjos possíveis para um casal”.

O texto continua, desta vez escrito por Michele. “Gostaríamos de deixar uma interrogação: o que é apresentar alguém como homossexual, na medida em que nunca vimos alguém se apresentar como heterossexual? Ou ainda, como poderíamos aceitar essa representação se a idéia do homossexual faz alusão à atração pelo mesmo sexo, se o encontro entre mim e Carla diz justamente da atração pela diferença de posição? Ou seria o estereótipo ‘homossexual’ uma forma de anular a reflexão e de manter a ilusão de que não temos ‘nada’ comum para fazer laço?”.

Considerei as questões colocadas por elas tão interessantes que quis trazê-las para essa coluna. Tudo o que nos provoca a pensar sempre nos faz avançar. Concordar ou discordar não é o mais importante. Acho que as pessoas dão valor demais ao “concordo” ou “discordo” – e assim perdem ótimas oportunidades de aprimorar sua reflexão porque sentem-se ameaçadas quando algo abala suas convicções. Provocações intelectuais valem a pena porque nos fazem refletir para além do que pensávamos antes – e tornam possível chegar a questões que também superam as iniciais. Valem a pena porque nos fazem duvidar de nossas certezas. E esse é um excelente exercício para nos tornarmos pessoas melhores, que pensam mais e melhor e conjugam a tolerância. Se o método servir para alguém, sempre que algo me parece muito novo ou mesmo absurdo, eu faço um exercício que começa por um silencioso, mas nem por isso menos sonoro: “Será?”.

É necessário ressaltar que a denominação homossexual e seus derivativos foram usadas por muito tempo para discriminar. Até pouco tempo o “homossexualismo” era considerado uma patologia, um desvio. E há quem ainda defenda essa teoria. Por outro lado, com imensa coragem e obstinação, o movimento gay conseguiu transformar uma definição que era pejorativa em ação afirmativa, fundamental para a conquista de direitos. Foi preciso afirmar a diferença para conquistar o direito de existir. Fechar-se em guetos se impôs como um espaço de proteção diante de uma sociedade preconceituosa – e uma estratégia para encaminhar as questões legais com maior poder de pressão. Hoje, o próprio desdobramento da sigla LGBTTTS, que não para de aumentar em função de novas definições, mostra um caminho de abertura. O trinômio GLS (gay, lésbicas e simpatizantes) não abarca mais todas as diferenças. E possivelmente teremos uma sociedade melhor quando as diferenças não precisarem mais ser explicitadas numa sigla.

É por esse caminho que me parecem ir Carla e Michele. Elas não ocultam nenhum elemento de sua condição. Pelo contrário, apresentam-se com uma transparência pouco vista, mesmo em militantes da causa. É preciso observar ainda que elas não circulam por guetos, mas na universidade, na escola dos filhos, nos restaurantes da cidade, no clube, nos próprios consultórios. E não em São Paulo, uma cidade que pelo tamanho permite a vivência de todos os arranjos – mas em Blumenau, uma cidade de porte médio, conservadora, com população predominantemente de origem alemã.

Ao escutar a argumentação de Carla e Michele, fiz várias indagações sobre minha vida e analisei meus arranjos amorosos em retrospectiva. Provavelmente eu nunca lidaria bem com um parceiro com uma posição masculina tão determinada. Percebo que tenho muito forte em mim as duas posições – e as alterno nos jogos amorosos e sexuais. Homens muito masculinos ou femininos demais acabam por me desinteressar. Sou atraída por gente que mistura, me fascino pelas nuances. E provavelmente por isso meu casamento tenha sobrevivido não às pequenas, mas a pelo menos uma grande crise.

Gosto, numa história de amor, da liberdade de ser uma coisa e outra. E, embora já tenha me sentido atraída por mulheres – femininas e masculinas –, nunca aconteceu. O que não significa que não acontecerá. E me exponho aqui em reciprocidade à exposição dessas duas mulheres, que entenderam que tinham a responsabilidade ética de se mostrar, para que outros brasileiros pudessem refletir sobre uma questão tão importante. Não acho que meu jeito é melhor que o de ninguém – nem que o de Michele e Carla sejam melhores ou piores que todos os outros possíveis. Acredito apenas, por tudo que vi, ouvi e senti, que elas formam um casal interessante e criaram uma família bonita.

Saí dessa experiência de reportagem com apenas uma convicção pessoal. Não sou heterossexual. Não porque pretenda começar a namorar mulheres, mas porque cheguei a conclusão de que essa definição diz muito pouco sobre a complexidade do que somos. Está na hora de criar nomes mais fluidos, acho eu. Se alguém me perguntar se sou homo ou hetero, vou dizer: “Sou uma mulher às vezes masculina, às vezes feminina, que gosta de homens às vezes femininos, às vezes masculinos”. É mais complicado, sem dúvida. Mas é bem mais estimulante. E libertador.


Eliane Brum - Revista EPOCA

Veja a história toda aqui